Eixo

 

Quando escrevo, canto, danço

Sou

Quando abro

Sol, brilho, vejo

Quando escoo

Fluido, errante, vivo

Se percebes

Abraça o perfume,

Inteiro

Quando brinco

Travessa, feliz, criança

Quando movo

Gesto ou montanha,

Mulher

Quando sinto

Palavra, memória, outra

Quanto em voz

Espaço tempo

Paz (infinito).

 

EIXO

.... se você não tem uma bergamota em mãos,

sugiro que abra uma tangerina madura... 

Eixo começou na poesia, na cinestesia. Incorporou-se em azul com a luz do sol em melodia e gesto, abriu-se em bergamota como nota de saída. Foi a primeira canção que levei a você, Ezequias, pensando num diálogo entre voz, corpo e violão, mais do que apenas uma harmonia para melodia. Na maioria das versões do show Menina dos olhos (2018/19), parte do processo criativo, Eixo foi a música escolhida para abrir a cena. E pensando nos aromas, ponto de partida de minhas criações, a saída mais evidente do perfume que compus para Menina dos olhos foi a bergamota. Começamos então pelo aroma...

 

                                                                               .... se você não tem uma bergamota em mãos, sugiro que abra uma tangerina madura. Sinta o óleo da casca nas mãos e o aroma a lhe provocar o nariz...

       ...permita que o doce-azedo quase florido lhe abra um sorriso e lhe permita reconhecer seu próprio eixo...

 

A bergamota acompanha meus processos há algum tempo, desde Errática (prêmio Klauss Viana, 2013), performance com que percorri museus e espaços abertos em três estados brasileiros: Salvador, Natal e São Paulo. Um cheiro de laranja quase em flor, mas com um amargor da maturidade, a bergamota vai muito além da simples alegria comumente associada aos cítricos. Se em Errática começou a me trazer amplitude e raiz. Em Menina dos olhos me trouxe a profundidade intensa do eixo, na amplitude da complexidade em diferentes faces do ser. No acorde horizontal de saída em Menina dos olhos trouxe a doçura em laranja, o faceiro da grapefruit, e o horizonte aberto da hortelã pimenta para comporem esse acorde de início de cena a partir de Eixo. Sons, cores, assim como aromas, são vibrações.

Gümbel (2017) propõe uma associação entre notas musicais, cores e partes do corpo humano e das plantas. Num sentido terapêutico, utilizando os óleos essenciais, a partir de suas funções aproximadas com os hormônios, o autor faz um paralelo entre o corpo da planta e o humano, cores e notas musicais. Minha sensação física dessa melodia traz essa complexidade. Começando em Gm, um tom mais associado aos vermelhos e laranjas e às funções de nutrição, germinação e raízes, eixo me traz ancoramento, uma sensação de estabilidade e firmeza. Segundo Gümbel (2017), a nota G estimula e rigidez no crescimento do caule e seu crescimento longitudinal nas plantas. Ao mesmo tempo um fruto, que se revela como máxima potência de uma flor traz aspectos mais delicados, abertos, leves e pueris, revelados em acordes e notas mais próximas dos azuis e lilases como D, E, F. A hortelã garante a circulação das frequências e as transições aproximadas do C.

Trabalho com aromas há muitos anos, contudo, há cerca de 5 anos, comecei a produzir os aromas de minhas aulas e espetáculos apenas com produtos naturais como tinturas e sinergias feitas com óleos essências.

Sempre tive a capacidade consensual dos sentidos, a sinestesia, posso ver uma escultura e escutar uma música, ou ouvir uma música e sentir um cheiro, me mover e descobrir uma melodia, ou escrever e criar uma performance, dança, música... enfim... para mim, o processo de criação em que me encontro vai me apresentando as linguagens de que preciso.

Em sua obra, Oliver Sacks (1998, 2011) relata vários casos de pacientes que perdem partes do cérebro referentes a um sentido e conseguem apreender a sensação do mesmo, recuperando-a em outra parte do cérebro. Também salienta a capacidade que o cérebro tem de através de um sentido perceptivo evocar o outro.

Existe, obviamente, um ‘consenso’ dos sentidos – os objetos são simultaneamente ouvidos, vistos, sentidos, cheirados; o som, a visão, o cheiro e a sensação ocorrem juntos. Essa correspondência é estabelecida pela experiência e associação (Sacks, 1998: 19)

A cinestesia e a sinestesia são partes inerentes ao meu processo. Como venho da dança, o movimento, a propriocepção, a cinestesia são como um sexto sentido (Hercoles, 2011) em meus processos de criação e a capacidade de transitar entre os sentidos, de um estimular o outro, de um ampliar a percepção do outro, me permite utilizar a sinestesia, interfaceando sensações e percepções, enriquecendo o material criativo.

A neurociência vem destacando, cada vez mais, as características da plasticidade cerebral. Percebo que os processos de criação que envolvem a linguagem da improvisação, a multiplicidade sensorial e de linguagens artísticas amplia essa potencialidade. Ribeiro (2013) considera a consciência como um fluxo distribuído por várias regiões cerebrais. “Os neurocientistas cognitivos sabem, já há algumas décadas, que o cérebro tem muito mais plasticidade do que se pensava” (SACKS, 2010:182). Em experimento realizado com eletroencefalograma no Instituto do Cérebro em 2019, pude comprovar a potencialidade da utilização do olfato, dos aromas na realização de movimentos e do canto. O aroma facilita a execução dos movimentos, exigindo menor atividade no córtex-sensório-motor, facilitando essas atividades (BRANDÃO In: LEAL, 2019). Nos processos criativos das canções aqui mencionadas tanto a cinestesia, como uma percepção do corpo em movimento, como a sinestesia como uma habilidade de transitar as percepções sensoriais e de uma evocar a outra, foram relevantes e preponderantes no desenvolvimento harmônico-melódico-performático.

 

Em “Menina dos olhos”, comecei pela escuta de Tico tico no fubá, de Zequinha de Abreu, o que me trouxe a primeira nota de coração do perfume do espetáculo, rosas. E logo um primeiro acorde vertical, bastante conhecido em perfumaria: baunilha, rosas e bergamota. “Eixo” tem nuances da bergamota mais enraizadas numa pitada de cedro do himalaia, que estabiliza, traz um reconhecimento de si, mas também amplia a revela doçura e maturidade, como a rosa.

Voltando à bergamota, para Shoppan (2016), esse fruto, um híbrido de limão e laranja amarga, possui propriedades aromacológicas que equilibram as emoções, favorecendo a auto-estima, combatendo medo, rejeição, culpa, sendo considerado o óleo do amor próprio. O olfato possui uma intensa conexão com as emoções. É o único sentido que tem acesso direto ao cérebro, ao sistema límbico. O sistema límbico avalia os estímulos sensoriais no que se refere à prazer ou dor, segurança ou repulsa. Junto com o hipotálamo, o sistema límbico controla impulsos primitivos e comportamentos emocionais como fome, sede, sexo, raiva, medo, tristeza, afeto (LEAL, 2020).

Podemos ver agora como e porque o olfato se relaciona com a emoção: o cheiro acessa diretamente o sistema límbico e o hipotálamo, onde os instintos e as emoções biológicas residem e onde a regulação neuroquímica/hormonal do corpo é controlada, e também acessa outras partes do cérebro, todas envolvendo a memória, a atenção e a integração psicossomática (DAMIAN, 2018: p. 101).

               

                Os cheiros são capazes de revelar memórias profundas e longínquas, lembranças de longo prazo, podem trazer sensações profundas. A memória de longo prazo olfativa é maior que a memória visual de longo prazo. (Lavabre, 2018; Tisserand, 2017). Além disso, é preciso muito pouca substância fragrante para percebemos um cheiro e não podemos evitar os cheiros por muito tempo, pois precisamos respirar. Um sentido extremamente relacionado à vida e à percepção de si, da existência de um si que se percebe.

                Quando crio, começo farejando, cheirando, buscando o perfume daquele momento. Para você, Ezequias, como é a fragrância de Eixo?!

Interessante observar como uma música começa. Por vezes, uma pequena melodia soprada pelo vento, outras vezes um ritmo nos quadris, que me traz uma frase, uma palavra. Eixo começou pela poesia, pelas palavras, pelo texto. Comecei o Show Menina dos olhos, num momento sócio-político-econômico-cultural muito ruim no Brasil. Como artista, senti uma fome imensa da cultura mais nutritiva, as melodias e harmonias mais doces e alegres para reafirmar o Brasil que quero ver e construir. Canções como Tico, tico no fubá, de Zequinha de Abreu, Disseram que voltei americanizada, de Luis Peixoto , Flor amorosa, de Catulo da Paixão Cearense e Joaquim Calado , O Côco do Côco, de Aldir Blanc e Guinga, entre outras compuseram esse repertório, minha “menina dos olhos”, para manter a força de uma brasileira em um país que sigo construindo com muita criação e arte. Essa força me trouxe a criação de composições próprias para o show, foram seis no total. Neste sentido, Eixo, precisava abrir o espetáculo mostrando meu enraizamento, meu próprio ser, centro, minha multiplicidade em poesia, performance e melodia.

A partir de uma primeira versão em poesia, Eixo foi se configurando em melodia e uma gestualidade nas mãos. Essa gestualidade me trouxe ritmos diversos e a necessidade de diálogo com a harmonia do violão, o que me lembrou a relação da bailarina com a guitarra no flamenco. Sinto a relação entre corpo e violão, voz e harmonia em Eixo como perguntas e respostas, nuances diversas de intensidade, ora mais graves, lentas... ora mais fluidas, suaves... mais ágeis, valorizando palavras soltas da melodia. A improvisação é uma linguagem de base em meu trabalho, em sua potência integradora entre interpretação e criação na presença mais consciente e sensorial da cena, do momento. Neste diálogo, a modificação é constante, tem uma estrutura melódica e harmônica em processo, que se presentifica a cada apresentação, a cada execução em abertura ao momento, ao espaço, à conexão com o outro, com o público.

Há muitos anos venho pesquisando a forma da escrita como conteúdo e teoria para a dança, para a música, para as artes. Como pesquisadora busco escrever com reflexões, por vezes, referências diretas, indiretas, mais comuns de um texto conhecido como acadêmico, mas também pesquiso e desenvolvo artigos mais poéticos, imagens, sons, vídeos como texto, como teoria, como reflexão da arte que proponho. Percebo que uma linguagem mais próxima da que refletimos sobre facilita o processo de conceitualização e teorização, aproxima-se mais da concreticidade das linguagens artísticas, bem como de suas materialidades: som, movimento, forma, imagem, palavra, perfume, espaço, tempo...

 Considero fundamental na escrita sobre arte pelo pesquisador artista também a auto-referência, questão muito presente na arte contemporânea, a percepção de um si que percebe e cria, seja melodia, seja dança, seja texto... Essa percepção amplia a presença e a consciência. Em meus processos venho pesquisando a consciência, sobre a qual me debruçarei mais ao refletir sobre a composição Quando em ar. Para este momento, considero a consciência fundamental que todo artista precisa para performar; o sentimento, o sentimento de si e os sentimentos de fundo (Damásio, 2008, 2010).

 

Os sentimentos classificam conteúdos percebidos em relação ao mundo, por meio de sensações de gosto, aceitação, rejeição (JUNG, 1974; WHITMONT, 1995). Em Damásio (1996) também encontramos essa característica de avaliação, bem como relações de gosto ou desgosto, contudo mais pormenorizadas em uma diferenciação entre emoções e sentimentos e uma classificação entre sentimentos de emoções e sentimentos de fundo. /.../

Os sentimentos que não são originados por emoções são denominados sentimentos de fundo e surgem de estados corporais de fundo como o sentimento da própria vida, a sensação de existir. Podem ser agradáveis e desagradáveis e ocorrem com mais frequência. As sensações musculares, articulares, a postura, o tom de voz são determinados pelos sentimentos de fundo: fadiga, energia, exitação, bem-estar, tensão, descontração, estabilidade, instabilidade, equilíbrio, desequilíbrio etc (Damásio, 2000 Apud: LEAL, 2014, pág. 244).

 

  Nesta compreensão, afirmar um si que cria, que conhece, que performa é presença e ampliação da consciência, necessidades cênicas ao labor e práxis de todo artista-pesquisador-docente. Como acontece esse processo de teorização da sua arte Ezequias, como pesquisador qual a forma de escrita que te satisfaz? A própria música, partitura deveria bastar em sua própria teoria? Que traduções possíveis em palavras realmente agregam na reflexão sobre o processo criativo?

O que sou?

Sou vida que pulsa em sopro

Sou semente, broto, botão

Sou a flor um pouco antes

Sou raiz bem construída

Sou o cheiro da brisa leve da manhã

Sou a luz que incendeia o coração de lua

Sou a voz da mulher que EnCanta...

Sou corpo em humano e efêmero

Sou mãe nesta vida, em amor absoluto!

Sou artista que sente muito

Sou os olhos, o nariz e a boca

Que recebem, devoram

e preparam o alimento

às almas famintas!

 

Permita-se apreciar a exposição aos poucos... deleite-se se com uma imagem, deixe-a lhe trazer memórias associações, ouça as canções, perceba como a vibração modifica suas sensações corporais, perceba os tempos em intimidade no diálogo proposto e complete-o com suas experiências de tempo a cada percepção, respire em cada imagem, feche os olhos algumas vezes, para perceber melhor os conceitos e perfumes.

Toda percepção começa pela mais simples, a percepção de um si que percebe. E a percepção de si começa pelo corpo, pela interocepção. O fluxo dessa exposição lhe convida a fazer uma pequena pausa e perceber seu corpo, sua presença. Comece focalizando sua respiração, o ir e vir do ar, o ritmo, a sensação do fluxo do ar entrando e saindo... Aproxime suas mãos das narinas e perceba os cheiros... o cheiro da sua própria pele, talvez o cheiro de sabonete, um cheiro de uma fruta que você comeu, um cheiro de suor...

Figura 5: Transcrição introdução- Eixo.

 

 

                Quanto a harmonia de Eixo, procurei perfumar a música,  experimentando acordes  que seguiam  o curso da poesia. Imaginei um “borrifar" de notas, que   misturadas, permitem a criação de harmonias que exalam o perfume de Gm  (Sol menor). Acredito que esta imaginação me permitiu encontrar  harmonias para a canção, transformando a performance em  uma  conversa improvisada,  recriando sempre no momento dos  ensaios e apresentações.

 

Seguramente a partitura não basta para mim, a música sim! A partitura é uma representação simbólica documental, importante, sobretudo como registro e auxílio ao trabalho do músico na produção musical. Em minha vivência como violonista intérprete, sinto que o texto musical deve ser traduzido em fantasia, sonho, cores, tensão, excitação, cheiro...! A partitura não nos revela as fantasias sonoras que buscamos em nosso inconsciente.

  Refletindo uma forma de escrita que me satisfaz, na verdade Patrícia, nunca pensei necessário teorizar a minha prática musical, até me inserir no meio acadêmico, onde esse aspecto se tornou parte do meu trabalho como docente-pesquisador. Venho buscando  um processo de pesquisa e criação que reconheça o conhecimento produzido no campo da prática musical, e como músico habitante do meio acadêmico, creio muito necessário proteger o trabalho criativo, em um ambiente de abrangência teórica, onde os métodos e resultados de pesquisa são direcionados e monitorados a partir de um pressuposto teórico, enquanto acredito que o processo de criação precisa conduzir  a pesquisa na área de artes. Observo que o músico, docente e pesquisador é condicionado e monitorado a dispensar o viés intuitivo de sua pesquisa, em detrimento de encontrar um ponto de partida teórico, racional, na maioria das vezes, sem criatividade e imagética. O viés intuitivo em muitas situações de pesquisa, fundamenta o processo, porém, está distante do modelo dominante da pesquisa acadêmica tradicionalmente desenvolvida na área de música. Sem dúvida, encontrar um ponto de equilíbrio entre a prática artística e a teoria, ou seja, como você menciona anteriormente, traduzir em palavras agregando reflexões sobre o processo criativo, é o melhor dos mundos, quando a performance, a criação, conduz a teoria.

 O texto científico, como produto de pesquisa na área de performance, unicamente, não contempla, em sua totalidade, o conteúdo do processo artesanal, tornando o resultado puramente teórico, rígido e sem sabor. Um toque empírico, porque não poético, apresentando uma autopercepção do momento da performance, imagens, vídeos, poesia, música, são determinantes e devem se entrelaçar ao texto. O pesquisador é levado a repensar e a criar outras formas de produzir conhecimento diferente dos parâmetros legitimados pelos métodos de cunho científico, em muitos momentos valendo-se dos próprios procedimentos artísticos, como modelo de condução de uma pesquisa (AVERSA, 2011, p. 1038).

  Se aproximar da concretude das expressões artísticas é sem hesitação a proposta que agrega maior significação, para mim, aos produtos de pesquisa em nossa área de atuação.  O artigo científico, resultado de pesquisa na área de performance, necessita concatenar outros elementos do fazer artístico, que podem surgir misturados ao texto. Entendo que precisamos romper com essa rigidez nas propostas de formatação dos periódicos na área de música e artes, procurando utilizar com pertinência, os recursos tecnológicos disponíveis hoje. Essa abertura e liberdade, na minha opinião, nos permite propiciar um maior alcance dos trabalhos de pesquisa em performance e seus impactos a sociedade. Ao meu entender, isso só acontecerá plenamente, quando atravessarmos as fronteiras tradicionais, praticando novos formatos de publicação.

No processo de criação de Eixo, diálogo entre voz, violão e corpo, me deixei levar por associações poéticas livres, empíricas, marcadas pela improvisação e intuição. Cada ensaio, performance, uma surpresa com naturalidade na variação do andamento, sutileza singular e dinâmicas imprecisas. Em nossas sessões de trabalho e criação, você me convidava a sentir o cheiro do momento e o acompanhamento do violão tomava forma de acordo com as nossas experimentações. O conteúdo poético em nossos diálogos nascia destas conversas interpretativas. Em nosso primeiro ensaio, Patrícia, você me apresentou uma partitura de Eixo que continha uma grafia musical básica, sem nenhuma indicação de harmonia e com uma métrica distante do que almejávamos. 

 

                Eixo, nasceu na cinestesia com cheiro de Sol menor. A tonalidade menor, permeia o universo criador em várias das canções da compositora, Eixo, Lua Cheia, Brisa, Quando em Ar, Menina dos Olhos, para citar algumas, estão em tonalidade menor. Esse universo sonoro, exala para mim Patrícia, o perfume do seu espetáculo “Menina dos Olhos”, pleno de alegria e luz azul! 

 

Figura 1: Escala de Sol menor Harmônica.

 

Por muitas vezes as tonalidades menores são associadas tão somente à melancolia e tristeza, na percepção de alguns ouvintes, músicos e compositores. Porém, muitas canções em tom menor, inspiram muita beleza e alegria. Luiza, Valsa de Antônio Carlos Jobim, é exemplo de uma linda poesia musicada que se inicia em tonalidade menor, transmitindo beleza e amor. Carinhoso, do nosso grande Pixinguinha, em tonalidade maior, pode despertar saudosismo, melancolia para alguns ouvintes. Já o Frevo de Rua, gênero musical instrumental Pernambucano, traduz calor, alegria, profundo estado de animação, porém, muitos deles estão em tonalidade menor!  Os exemplos citados são meramente ilustrativos, no que quero me referir à percepção em relação as tonalidades maiores e menores e o estado afetivo do ouvinte, sem relação comparativa a estética e estilo das canções Eixo e Quando em Ar. Para alguns ouvintes, o menor é alegria e esperança e para outros ouvintes, músicos e não músicos, pode ser tristeza. Nos nossos ensaios esta indagação surgiu, pelo fato de várias canções de Patrícia Leal estarem em tonalidade menor, aí a pergunta, minha música não é triste, é? não, eu sinto, e no processo de criação da harmonia para as canções senti, uma expressão melódica em tom menor com vivacidade.

 Acerca das reações de afeto, nas estruturas de acodes, maiores e menores, como nos modos, o pesquisador da UNICAMP, José Fornari, em seus textos e experimentos, Modos Maiores e Modos Menores de Acordes Harmônicos e Acordes e Afetos, relata que a percepção melancólica em relação as tríades menores está relacionada ao ambiente cultural do ouvinte.

Alguns povos ao redor do mundo, tais como os que habitam áreas do sudeste europeu (península balcânica), partes do norte africano e também no oriente médio, não tendem a constatar o modo menor como remetendo à melancolia, solenidade ou “ruminação mental”. Isto nos leva a concluir que o fator cultural é também um elemento fundamental para determinar no ouvinte a constatação afetiva dos modos musicais, como é o caso dos modos maior e menor. (FORNARI, 2019)

O ouvinte, músico e não músico, de cultura ocidental tenderá a associar a tristeza, tríades menores, (ex.C-Eb-G).  Já em relação as tríades maiores, o pesquisador  constata em seu experimento através de um gerador de sons puros, que as frequências fundamentais das notas que constituem a tríade maior,(ex.C-E-G), estão mais próximas dos primeiros harmônicos da série harmônica, iniciada na nota Dó,( primeiro, quinto e terceiro) por esta razão, de acordo com a pesquisa, a tríade maior tende a ser processada mais facilmente pela cognição musical, e por isso, soa alegre, descontraída, para o ouvinte ocidental.  Na tríade menor, os harmônicos estão mais distantes na série harmônica, (quinto, terceiro e decimo quinto), então, na maioria dos casos para os ouvintes de cultura ocidental soa mais triste, melancólico (FORNARI, 2019). Portanto, a diversidade expressiva no campo da criação e interpretação musical não generaliza as sonoridades das tonalidades menores, unicamente para expressão de tristeza e melancolia.

 

 

                Algumas notas são identitárias na flagrância Gm (Sol menor). Represento aqui na pauta, as notas e as alturas que permeiam o universo sonoro de Eixo, referência para o perfume do acompanhamento do violão. 

 

 

 

Figura 2: Notas que permeiam o perfume do violão

 

 

                Notas graves, de sustentação, fundamentando o panorama sonoro da harmonia. 

Figura 4: Efeito em forma de arpejo

 

 

                Transcrevi um exemplo de um momento de introdução no processo criativo de Eixo. O material que apresento na transcrição, varia constantemente e é aplicado sem definição prévia, ao acaso, vivendo a presença de cada momento da criação interpretativa. A linha melódica na região grave do violão é um contraponto aos movimentos circulares que Patrícia realizava com as mãos, na introdução, antes de iniciar o canto. 

 

Figura 3: Notas Graves. 

 

 

                Patrícia me sugeriu um apelo Flamenco para o violão. Imaginei  alguns efeitos violonísticos, como por exemplo, esta ideia em arpejos. 

 

 

Toda vez que canto Quando em ar tenho a referência da imagem do momento em que a melodia da canção nasceu. O sol entrando pela janela do meu quarto, inundando o ambiente de azul das cortinas, uma sensação de suspensão do tempo num espaço horizontal infinito. O acolhimento macio da cama na pele do corpo. O fim de um momento e o começo de outro. O fim da noite e o começo do dia, um momento de silêncio, reverência e um surgimento em luz, calor em azul inundado pelo cheiro de rosas. Gosto quando uma melodia aparece de manhã organizando as palavras em sentido, tem um tom mais grave de aconchego em minha voz, corpo porque é de manhã. Quando encontrei você em violão para arranjarmos a canção, o violão me trouxe ainda mais aconchego e um cheiro tão vivo em minha memória, o cheiro da madeira do violão, o cheiro de dentro do violão.... uma referência de infância, do cheiro do violão do meu pai, dos violões em chorinho do meu pai e dos meus tios em roda... fiquei procurando esse cheiro próximo à referência das rosas, nota de coração do show, mas busquei esse aroma da própria madeira e levei no ensaio a você, além da rosa damasceno, a madeira do palo santo. A madeira do palo santo, de odor forte, adocicado, tem uma peculiaridade muito singular, seu aroma só aparece  de três a dez anos depois que a árvore (Bursera graveolens) morre de forma natural. É muito utilizado em meditações.

              Os aromas, conforme já elucidamos anteriormente, tem uma profunda conexão com a memória, contudo quando trabalho criativamente busco perceber a memória, mas manter a percepção e a elaboração da materialidade das linguagens com as quais estou criando, um trabalho de ampliação da consciência. Utilizo muito também, em meus processos de criação a meditação como um estímulo a partir de um aroma, a partir da metodologia da Arte pelos sentidos (LEAL, 2020). A questão mais importante para mim, neste processo, é não antecipar ou projetar a percepção, mas realmente manter a consciência perceptiva no momento presente, criando, interpretando. A tendência mais comum é mantermos a consciência intercalando momentos de apego ao passado, projeções futuras e momentos de presença.

 

A utilização da meditação na Arte pelos Sentidos vem facilitando esse processo de ampliação da consciência, de presença, para perceber um desenvolvimento criativo direcionado por um julgamento ou um condicionamento técnico, por exemplo, ou de uma criação idealizada por uma imagem simbólica e escolher permanecer nessas acumulações ou compulsões ou permanecer presente, observando, experimentando, sem a identificação, deixando fluir e permanecendo na materialidade criadora, consciente. Percebo que este estado de presença, geralmente, acontece de forma intervalar, descontínua. Por vezes, nos mantemos em vigília, por vezes, em estado de absorção e, por vezes, conseguimos acessar a presença, o ser, o superconsciente (LEAL, 2020, pág. 96).

 

                Busco em minhas performances a melhor consciência possível em relação à presença, o que me parece resultar em maior qualidade em relação à linguagem artística que realizo em cena. A partir da compreensão de superconsciência das Upanixades, podemos integrar a tendência ao apego ao passado, ao subconsciente, bem como à tendência à idealização, à projeção como antecipação inconsciente, observando essas tendências sem identificação demasiada a elas, mantendo-se presente (MEHTA, 2003). Exercito em meus processos de criação a consciência e a presença. Percebo a consciência em relação à presença de forma intervalar em relação à apegos e antecipações, buscando a manutenção constante da consciência no momento presente. Exemplifico por meio de uma autopercepção de minha performance da canção Quando em ar em ensaio em fevereiro de 2019 em show no auditório Onofre Lopes, na Escola de Música de UFRN  dia 21 de março em 2019:


O processo de criação da harmonia para Quando em Ar, nasceu do cheiro de dentro do meu violão, cheiro de cedro e jacarandá!! Inicialmente, quando você apresentou a canção pela primeira vez, cantou à capela, não ouvi violão para o arranjo, imaginei piano. Lembro que você não concordou...! e relutou, “essa música é violão eu sinto cheiro de rosas!!” No ensaio seguinte, você me convida a sentir o cheiro do palo santo, como você relata, cheiro forte e muito agradável de madeira. O cheiro transportou minha percepção criativa para madeira, violão, chegando em casa, cheirei forte dentro do meu violão, sentindo madeira, cedro, jacarandá e naquele mesmo momento iniciei o experimento com harmonias e acordes ao violão  de forma livre, empírica, levando meu ouvido a lembranças do cheiro da madeira, procurando sonoridades espaçadas que saíssem com notas de coração de dentro do violão, os acordes  queriam ser escutados com calma, esperando o som da sua poesia e  dialogando com sua voz. Mas uma vez a dança está muito presente, em meu sentimento, quando você canta.

 

Quando em Ar está na tonalidade de F# menor, curiosamente ½ tom abaixo da tonalidade de Eixo.  Mas a harmonia, em Quando em Ar acontece em outra atmosfera. Os cheiros da harmonia vão em busca de  colorir  sua poesia,  isso já no início da canção, no acorde de C#7M(#5), que  representa um quarto em luto.., a nota  da palavra luto, me  inspira um acorde misterioso, cinza, sonoridade de um ser refletindo em si mesmo,  o acorde vem em suspenso, com tons mais escuros, harmonizando as notas, Lá e Sol#.

Figura 6: manuscrito de Ezequias Lira para harmonia em Quando em Ar.


 

 Outro momento da harmonia com cheiro forte de madeira é a nota da palavra, sou, me trazendo este acorde E(#5)/D para nota Sol#, este som invade a harmonia com claridade e reflexos de luz em água.

 

 

Quarto em luto, escuto, almejo,

Aonde antes bruto soa, agora, suspenso

O tempo,

Na memória, tece e voa

Abre em sol

Fecha em si

Quando em ar posso ser mais

Indefinidamente, múltipla

Quando em sopro e signo

Meu mais suave timbre é 

 

Q     u    a    n    d    o         e   m              a           r

P  o   s   s    o       s    e    r        m    a   i   s         i     n   d   e  f   i    n   i   d   a   m   e   n   t   e      

 M ú l t i p l a

Q  u  a  n  d  o     e   m      s    o     p    r    o      e     s   i   g   n   o

M   e    u           m       a      i    s          s     u      a     v     e          t      i   m     b     r    e         é

AAAAAAAAAAAAA       MOOOOOOOOOORRRRR  

 

QUANDO EM AR

Figura 7: Manuscrito de Ezequias Lira para harmonia Quando em Ar.

 

 

Outros acordes estão completamente interligados à poesia, a sonoridade das palavras, como, agora..  C#(7M)(#11). e suspenso o tempo C7(#11)

Bibliografia

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HERCOLES, R. A não representação do movimento. In: Rengel, L.; Thrall, K. Coleção Corpo em cena. V.2 São Paulo: Anadarco, 2011.

JUNG. G, Carl. O homem e seus Símbolos, versão em língua portuguesa editora nova fronteira, 3Edição, Rio de Janeiro.

LAVABRE, Marcel. Aromaterapia: a cura pelos óleos essenciais. B.H.: Laszlo, 2018.

LEAL, Patrícia. Dança/arte pelos sentidos: continuidades aromáticas, fluxo e consciência. Natal: Editora Caule de Papiro, 2019.

__________ Espaços-tempos: sentimentos errantes em fluxos dramatúrgicos. In: Dossiê: o artista docente em Dança: discursos e práticas. OuvirOuver: revista do Programa de Pós-graduação em Artes da UFU, Uberlândia: v.10, n.2, 2014.

__________ Amargo Perfume: a Dança pelos Sentidos. SP: Annablume, 2012.

MEHTA, Rohit. O chamado das Upanixades. Brasília: Teosófica, 2003.

RIBEIRO, Sidarta. Tempo de Cérebro. In: Estudos Avançados. V.27, n.77, SP, 2013.

SACKS, Oliver. O rio da consciência. S.P.: Companhia das Letras, 2017. 

___________O olhar da mente. SP: Companhia das Letras, 2010.

___________ Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. SP: Companhia das Letras, 1998.

SCHOENBERG, Arnold. Harmonia/ Arnold Schoenberg; introdução, tradução e notas de Marden Maluf, São Paulo: editora UNESP, 2001.

 

Lista de imagens:

(de cima para baixo)

Eixo

Imagem 1 e 2: Fotografias de André Rosa, Memorial de Natal – RN.

 

Quando em ar

Imagens 1 e 2: Fotografias de André Rosa, Praia de Ponta Negra em Natal – RN.

Imagem 3: Fotografia de Raul Gama, Auditório Onofre Lopes – Natal – RN.

 

Perfumes em contexto e história

Imagem 1: Fotografia de Patrícia Leal, Processo de perfumaria.

Imagem 2: Fotografia de André Rosa, Praia de Ponta Negra em Natal – RN.

 

 

Figura 8: Manuscrito de Ezequias Lira para harmonia Quando em Ar.

  

Procurei na criação da harmonia para canção Quando em Ar, dar um caráter colorido para os acordes, expressando determinadas atmosferas do momento presente, considerando a melodia integrada aos acordes na harmonização.  Através da busca por estes climas sonoros e acordes de diferentes cores e surpresas, descubro, em cada caminho inusitado, o cheiro de madeira que me despertou para as ideais de harmonização da canção. Este processo de criação e interpretação do acompanhamento, de forma intuitiva, me permitiu procurar harmonias, explorando um recurso idiomático ao violão, que são as Campanellas. Este recurso, produz um efeito de reverberação e sustentação da harmonia, quando, na distribuição das notas dos acordes, utilizamos cordas presas e cordas soltas, deixando que soem simultaneamente. A canção Quando em Ar esta na tonalidade de F#m, tonalidade que não propicia uso de cordas soltas, porém, em minha procura por  coloridos, utilizei as notas, em corda solta, SI ( 2º corda do violão), e a nota MI( 1º corda do violão),  que harmonicamente agregadas como complemento harmônico[1], as tríades de F#m e F, geram os acordes de F#m7 e F7M(#11) .  Interpretados em forma de arpejos, deixando vibrar as cordas soltas, (SI e MI), simultaneamente com notas da tríade de F#m e F.

Elaborei um exemplo ao violão, interpretando um trecho da canção Quando em Ar, com intuito de ilustrar os comentários do texto, demonstrando de forma prática o processo de criação da harmonia. Destaquei no exemplo sonoro, passagens harmônicas e as melodias que se integram a harmonia com sustentação e espaçamento.



[1] Notas que são ajuntadas à tríade do acorde, (maior ou menor) que trazem embelezamento e colorido no processo de harmonização.

Continuidades...

Este percurso-trajetória criativa entre voz, corpo, violão, música, performance, dança, perfume poesia é infinito. Para este diálogo proposto utilizamos parte de nosso processo de 2018 a 2020, a partir de uma pesquisa de Pós-doutorado que resultou em um show Menina dos olhos, seu perfume homônimo e um livro: Dança/Arte pelos Sentidos (2019/2020). Neste diálogo aprofundamos nossas percepções e reflexões a partir de duas composições específicas desse show - Eixo e Quando em ar- que, no presente momento, passam por reelaborações criativas, novos arranjos para compor novo trabalho em um CD inteiramente autoral, cuja gravação acontece paralela à programação de uma residência artística: Improcesso 5: residência dialógico performática: cantar pra você. A natureza da criação revela-se processual e um pouco do processo dessas canções traz a linguagem da improvisação, dos perfumes, do corpo, da cena, da música e da poesia como potências.

Na apreciação de Quando em ar, experimente colocar os pés na água... Vá para o riacho mais próximo, sinta o impulso fluido horizontal da correnteza. Vá para a beira do mar em maré baixa, deixe as águas mornas lamberem seus pés para longe... Vá para um espelho d’água, uma piscina no raso ou até mesmo uma bacia aonde você possa repousar os pés, permita que a água ao tocar seus pés, dissolva seus pensamentos e os renove, integrando-os à sensações mais fluidas e afetivas...

Ensaio. Trabalhando junto à Ezequias no violão 7 cordas o arranjo para a composição “Quando em ar”. O cheiro de rosas, as referências de rodas de choro e seresta em minha infância são muito fortes. Tento trazer a referência desse aroma para Ezequias, mas não diretamente com o óleo essencial de rosas, como já fiz. Dessa vez, trouxe um pedaço de madeira de palo santo. Um cheiro delicioso de rosas em violão. Depois de sentirmos o aroma, executamos mais uma vez a canção... Espaçamento... Sempre preciso me sentar para cantar essa melodia, quase não consigo abrir os olhos... estou no leito de um rio... quase posso ver a água calma, plácida, mirra, horizontal... a harmonia suspende o tempo em acordes espaçados... o tempo prolonga-se infinitamente...os baixos do violão me trazem a segurança do pai para a menina que ouve, sentada no chão... no leito do córrego, estou em cena, meu sopro sai, amplia, longe, intensifica, volta, suaviza, perto, muito perto. É como trazer alguém da plateia para sentar ao meu lado. O violão em acordes cheiros atravessa meu peito em um tempo outro, infinito. Sou água escorrendo, percorrendo, inundando, pingando, estancando, rompendo.... os aplausos, qual gotas de chuva compõem meu leito em final de canção (LEAL, 2020, pág. 96-97).

 Patrícia Leal

Patrícia Leal é artista, cantora, poeta, bailarina. Pesquisa processos de criação valorizando a linguagem da improvisação e a percepção sensorial. Realizou espetáculos como “Menina dos Olhos” (2018-2019), “Ponto Móvel” (FIC 2016-2015), “Errática” (Funarte – Klauss Vianna, 2013-2014), entre outros. É docente e pesquisadora na Licenciatura em Dança da UFRN, com Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFRN e Doutorado pelo Instituto de Artes da Unicamp. Autora dos livros: “Arte/dança pelos sentidos: continuidades aromáticas, fluxo e consciência (2020), editora Caule de Papiro,  http://cauledepapiro.com.br/files/208f7a56553555194bab25708f46664a4b88f370.pdf “Em fluxo: poesia, prosa, teoria em dança na contemporaneidade” (2017), editora Caule de Papiro; “Amargo perfume: a dança pelos sentidos”, (2012) editora Annablume, “Respiração e expressividade: práticas corporais fundamentadas em Graham e Laban,  (2006) editora Fapesp e Annablume.

Redes sociais:

@oficialpatricialeal

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Outros vídeos:

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"Ponto Móvel"

https://www.youtube.com/watch?v=eQht6_E5m78 

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IMPROCESSO 2 - UMA POSSIBILIDADE DE RASTRO (documentário/ experimental/video-dança) - 10’14" - 2016 https://vimeo.com/149136749 

 

 

Ezequias Lira

Violonista Pernambucano, desenvolve um processo criativo que valoriza linguagens musicais enraizadas na tradição musical brasileira, divulgando, descobrindo criando e interpretando sons, que dialoguem entre seus arquétipos musicais e a contemporaneidade. Realizou performances em festivais de música em diferentes países, como, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Cuba e México. Atualmente é professor efetivo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e ministra aulas no curso de bacharelado em Violão Brasileiro Popular e atua como orientador no programa de mestrado, PPGMUS/UFRN na linha, processos e dimensões da produção artística dos séculos XX e XXI.

Spotify-Balaio

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Canal Youtube:

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PERFUMES EM CONTEXTO E HISTÓRIA...

Quando propus esse diálogo imagético-sonoro-textual à Ezequias, como compositora das canções Eixo e Quando em ar, a intenção foi promover uma exposição que vislumbrasse mais a intimidade e o processo das canções. De onde elas surgem, como são levadas da bailarina-cantora-compositora ao violonista harmonizador, como esse processo vai sendo vivenciado e como transforma as canções.

Trabalho com o olfato como estímulo criativo há mais de 20 anos e, neste percurso, fui desenvolvendo metodologias de criação que utilizo em meus processos, bem como compartilho com meus alunos na graduação de Dança, na Pós-graduação em Artes Cênicas e, mais recentemente, na Pós-graduação em Música da UFRN em Natal - RN, por meio de um Pós-doutorado que realizei e tive Ezequias Lira como meu tutor. O intuito dessa exposição não é apresentar a pesquisa de Pós-doutorado, já publicada em livro, trarei apenas um breve contexto de pesquisa, de vida, para melhor elucidar algumas questões apresentadas.

Meu interesse pelo olfato começou antes dele, começou pela respiração. Pesquisei, em meu mestrado, as relações entre a respiração e o movimento expressivo focalizando um trabalho corporal fundamentado em Martha Graham e Rudolf Laban. Desse fascínio pela possibilidade da respiração em permitir maior fluxo expressivo, bem como pelo interesse em conteúdos relacionados à respiração e à consciência, me formei também como professora de Yoga.

Já no doutorado desenvolvi metodologias de interpretação, improvisação e criação e uma trilogia de espetáculos, baseados nessas metodologias, que continuo desenvolvendo junto a meus processos criativos desde então. Esse fluxo também considera o compartilhar dessas metodologias com outros artistas e alunos. Iniciei esse percurso metodológico no doutorado ampliando uma coluna à conhecida tabela VII de Laban, que correlaciona os fatores do movimentos às suas qualidades, associando os fatores do movimento de Laban aos sentidos da percepção numa aproximação didática, para facilitar o desenvolvimento de nuances qualitativas por meio dos sentidos. Aproximando fluência e olfato/paladar, espaço e visão, peso e tato, tempo e audição. Este aspecto metodológico foi abordado nessa pesquisa de Doutoramento desenvolvida no Instituo de Artes da Unicamp, denominada como Improvisação pelos Sentidos. Para a produção dos espetáculos da pesquisa desenvolvi um outro aspecto metodológico que continuo até hoje: a Dança pelos Sentidos. Essa metodologia aborda o olfato como estímulo inicial às criações, utilizando a percepção desse sentido como movimento primeiro, valorizando a materialidade do movimento como condutor do processo e a linguagem da improvisação como fio condutor e, muitas vezes, também como fim cênico. A metodologia aborda também a continuidade de conceitos iniciados no mestrado a partir do yoga, aprofundando a pesquisa sobre a consciência em correlação à conceitos da neurociência e da psicologia Junguiana.

Dando continuidade a essa pesquisa ao longo dos anos, fui percebendo que a metodologia não se aplicava somente à dança, recebi muitos alunos de outras áreas como teatro, música, artes visuais, filosofia, bem como minhas produções artísticas não se limitavam à dança e chegaram em formatos diversos: instalações, performances em museus, praças e até shows. Percebi a naturalidade dessa transversalidade de linguagens a partir do fio condutor da improvisação como linguagem de criação e, também, a partir da ampliação da consciência por meio da percepção sensorial a partir do olfato. Comecei a utilizar a meditação com mais ênfase como procedimento inicial nos processos de criação e a aprofundar conceitos sobre a consciência a partir da referência do yoga, do Vedanta, das Upanixades, em correlações com as neurociências, psicologia, aromaterapia, perfumaria. Assim, surgiu a necessidade de continuidade da metodologia Dança pelos Sentidos, numa pesquisa de Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Música da UFRN. Nessa pesquisa comecei a intitular a metodologia como Arte pelos Sentidos, justamente pela possibilidade de criação em qualquer linguagem artística e pelo fluxo possível entre linguagens e sensorialidades a partir da ampliação da consciência perceptiva e da linguagem da improvisação como fio condutor integrador entre interpretação, criação e presença.

As canções apresentadas como foco na presente exposição são um exemplo das características mais fluídas entre linguagens do processo mais atual metodológico. Iniciei essas composições antes do Pós-doutorado, a partir de um espetáculo que compus com o pianista Eduardo Taufic, que mesclava a dança e o canto, música. Foi a primeira vez que, em meu processo, a metodologia me levou diretamente para outra linguagem que não fosse a dança, primeiramente veio a música. Este espetáculo, Ponto Móvel (FICC 2015/2016) começou quando cheguei à Natal e fui presenteada com uma fruta que não conhecia: a pitomba. A partir do cheiro da pitomba, pela primeira vez, não criei movimentos, mas ouvi e fui colecionando um repertório de canções de Chico Buarque, Arrigo Barnabé, Daniel Taubkin, Carlos Careca, entre outras que, posteriormente, formaram o espetáculo. Já no Pós-doutorado, realizai um show, Menina dos Olhos, a partir do perfume que senti ao ouvir a canção Tico tico no fubá, de Zequinha de Abreu. Senti um cheiro de Rosas que fui compondo ao longo do processo e articulando com outras notas aromáticas como bergamota, gerânio, baunilha, âmbar... bem como com outras canções bem conhecidas como Flor Amorosa, de Joaquim Callado e Catulo da Paixão Cearense, O Côco do Côco, de Guinga e Aldir Blanc, Disseram que voltei americanizada, de Luis Peixoto, Tua Boca, de Itamar Assunção, entre outras e também algumas composições próprias como Eixo e Quando em ar.

Essas composições iniciaram antes da pesquisa de Pós-doutorado, a partir de uma sensação, memória, palavras, alguns movimentos, e foram se reconfigurando a partir de perfumes evocados, arranjos e sonoridades que foram sendo buscadas em conjunto com o violão. O processo da Arte pelos Sentidos vem se apresentando mais aberto, interfaceado, abarcando mais nuances sutis, com o tempo. Se as composições começaram em uma sensação, que se tornou cheiro, palavra; o corpo em vibração gerou melodia, a melodia fez-se gesto, o gesto contaminou o arranjo harmônico e, assim por diante. O processo dessas composições mostrou-se múltiplo em linguagens e configurações, sutil e profundo, potente pela presença da linguagem da improvisação como processo aberto em fluxo e uma ampliação consciente perceptiva entre corpo, som, palavra, perfume.

Escolhemos expor aqui duas versões de Eixo, a primeira foi feita como Coreovideodança, com a contribuição de meu orientando André Rosa, evidenciando minha linguagem de origem, a dança, em conjunto à gravação da música, em performance no vídeo no Memorial de Natal, um museu aonde realizei muitas Jam Sessions e uma residência Improcesso, na terceira edição, uma residência que se dedica à linguagem da improvisação em tempo real e compartilha a metodologia da Dança/Arte pelos sentidos com outros artistas. A segunda versão escolhida, justamente pela diferença de momento, foi gravada durante a quarentena numa versão que estamos pesquisando e afinando para uma gravação, que será divulgada na atual quinta edição do Improcesso e, posteriormente, em CD. Essa segunda gravação foi feita de forma mais intimista, cada um em sua casa, em momento de isolamento, editada por Raul Gama. Essa gravação mais recente vem retroalimentando meu processo de criação que assume muitas formas, idas e vindas, origens, fins, recomeços. A partir desse novo arranjo e gravação, agora estou compondo um perfume. Da mesma maneira, todos os elementos da exposição, imagens, músicas, poesias, diálogos compartilhados foram escolhidos para evidenciar o processo, em multiplicidade sensorial. O processo na Arte pelos Sentidos permite múltiplas expressões e continuidades, podemos partir de um cheiro para criar uma canção, de um poema criar uma dança, de uma música voltar a um aroma. O aroma é um ponto de partida, que provoca outros, permite a volta à fragrância e o fluxo, pela ampliação da consciência perceptiva, e pela manutenção e elaboração da materialidade em questão pelo fio condutor da improvisação.

Fica o desejo que vocês sintam! Permitam-se fluir no tempo ouvindo o diálogo entre a voz e o violão, sentindo a melodia dos poemas na pele, tateando sentidos às palavras, abrindo uma larga respiração às imagens, cheirando a música apresentada.