Presença de Cheshire

A tarde era de segunda-feira quando chegaram estas palavras. “A Música surge-nos como algo que não existe num só plano. Essa consciência é aquela que nos pode levar a fazer Música um espaço — tempo de grande valor simbólico, e a confirmar a singularidade humana. Uma caixinha de música será sempre um lugar para proteger a música da efemeridade de que os seus sons são feitos. Caberá à condição humana o esforço de reconhecer a música nos seus encantos e nos seus limites.”1

E se começássemos a confiar plenamente na nossa capacidade de receber mais e assim nos tornarmos mais abundantes? É com esta reflexão em mente que se impulsionam todas as conversas e partilhas que geram o projeto apresentado. Uma reflexão que permite dar um lugar de fala à singularidade, à alteridade, à empatia, à compaixão…

A(s) Música(s) do Mundo transparece(m) como cada pedra presente nos momentos de contemplação — conseguimos separa-las, e cada uma terá um som que lhe pertence. Uma identidade não se parte em pedaços.

 

Fui levada a servir-me do lugar de privilégio, que sem esforço da minha parte, me foi atribuído. Claramente mais uma distribuição social que procura equidade. Ouço música, leio livros, investigo e relaciono-me sem nunca me ser retirado o espaço de expressão. 

Este espaço irá violentamente narrar a marginalidade, o que nunca poderá revelar leveza, rapidez e exatidão. A visão do mundo é tão ampla como cada pessoa que existe, mas, penso constantemente que a distribuição do privilégio encontra-se a partilhar o patamar onde também conseguimos encontrar a distribuição da riqueza.

 

Um documentário apresentado pelo UNESCO em 1966 que nos colocava em alerta com a música não escrita, já afirmava que a mesma estaria em risco com a produção em massa.2

Absorvemos um lugar crítico com esta realidade. Este lugar é apenas um troca de Conhecimento e Humanidade. As pessoas que as guardam não podem partir sem saberem a tamanha importância que carregam com as suas canções. Apenas há palavras de agradecimento por as terem salvo durante todo o seu caminho. Elas estão no nosso exterior, agora há o dever de as inspirar, de as ativar. 

 

Temos de fazer com que os outros nos habitem, porque antes de sermos ouvintes a entrar e a nos estabelecer em novas regiões, somos ouvintes que saíram. Esta é a premissa proposta para o trajeto a percorrer.

 

 

Na Natureza, tanto o processo de criação como o de destruição acontecem em condições “imperfeitas”. Acontece quando há uma inata e imparável aspiração de crescimento, sobrevivência e moldagem/adaptação, com uma não-importância atribuída às circunstâncias onde acontecem — não há espaço para a luxúria da espera de um “tempo perfeito”. Apenas se vive o Presente e tudo o que pode acontecer nesse Tempo, e no Seguinte, e no Seguinte. O florescer desta caixinha de música é totalmente coincidente com esta realidade, sendo estes últimos meses lugar de escuta, receção e tempo.

O Tempo não é paralelo mas a interdisciplinaridade e a sua construção abstrata de simultaneidade continuam presentes.

Como me aproximo com os sons que oiço? Ativamos a nossa capacidade/característica de sermos porosos. O meu maior cultivo está na procura do que me é externo, nos sons que eu não sei quais são. Há a construção de um lugar, cheio de sonhos e poderes — lugar este que se irá tornar passaporte (licença para viajar nas) de cultura(s).

Se a ligação emocional não existir, não há possibilidade de ser visto.3 

Por vezes, a maior compaixão que podemos demonstrar é simplesmente reconhecer e afirmar a experiência do outro.

 

Sentem-se e apaguem as luzes. A responsabilidade é nossa.

1. Tentativa de ler o Mundo

 

“Este ofício de Ouvinte.”

Embatemos neste preciso momento na porta de saída.

Passa ligeiramente das 8 da manhã quando as palavras começam a ser esbatidas. É o dia do Solstício de Verão mas toda a noite nos fez lembrar a chegada de uma época que faz abrandar o Tempo.

 

Com a entrada no novo século, Georgia Born e David Hesmondhalgh afirmavam a existência “de um problema comum nas reflexões nos campos da musicologia, da etnomusicologia e da música pop, a teorização da música e da identidade, e implicitamente da diferença”.4

A minha (/nossa) posição coloca-me, neste momento, muito para além de uma tentativa de dar controlo ao Homem do inefável.

Aconteceu definitivamente uma mudança de paradigma. A sua base apresenta novas premissas, axiomas e teorias, de tal forma que nos coloca a ver o Mundo de um outro panorama.5

Todos os espaços são temporais. São governados não só pela Natureza mas também pela nossa constante e em movimento relação com eles. O Mundo que nos rodeia continua de facto a ser uma revelação de criação — e acresce ainda que fazemos empaticamente parte dessa criação.

Como humanos, somos dotados de uma natural abertura para nos aproximar e experienciar o outro de forma muito peculiar, não só praticamente como esteticamente. Os homens educam-se entre si mediados pelo Mundo.

 

Surge então a questão de como é que com todo este posicionamento inicial se chega ao Natal e ao Solstício de Inverno (meados de dezembro) como ponto de partida? Existe de facto uma resposta simples — o Natal foi uma criação "identitária" como resposta aos, cheios de significado, rituais pagãos que se realizam com a chegada da nova posição de rotação da Terra. A sua celebração em nada tinha de chocante com a forma como se recebia a Religião, apenas a sua referência é que se distinguia.6

Aqui, verifica-se claramente que já no início da construção da Humanidade e das sociedades havia o sentimento de ameaça perante a Alteridade.

 

 

 

2. Eu constato

 

Torna-se então necessário o mergulho e consequente, breve e relevante, exposição de quatro casos, e particularmente celebrações, distintos geograficamente — Irão (Noite de Yalda), Roménia (Cânticos de Natal), América Latina (Navidad) e Ilhas do Pacífico.

 

As métricas musicais entrelaçam-se com a métrica das palavras.7

A tradição refugia-se na filosofia da transcendência dos antepassados, e assim se chega à linha de continuidade cultural.8

A essência presente na transmissão da cultura musical do Irão é caracterizada por um enorme sentido de responsabilidade. O ambiente cultural onde cada recetor se movimenta é fundamental para a aquisição desta consciência sonora. Aliás, quando é o próprio ambiente o meio de transmissão, a ideia de imersividade é bastante associada. O conceito de Educação chega quando este meio se desloca para a família e é encontrado um outro patamar de reflexão quando são mestres a se dedicarem a esta continuidade. É possível revelar conceitos fundamentais como o silêncio, a metáfora e premissas implícitas nos seus níveis de pedagogia.9

Esta demonstração de hospitalidade cumpre a mais longa paisagem musical da cultura europeia.10

A imagem fortemente vincada dos nómadas musicais romenos nesta época festiva permite encontrar mais pontos de ligação. As suas canções expressam esperança e prosperidade, uma boa época de colheitas, saúde e felicidade. O lado da receção musical é caracterizado pela Hospitalidade e pelas recompensas gastronómicas.11

 

A nação iraniana é apresentada como das mais antigas civilizações estabelecidas da História.12

A noite mais longa do ano apresenta como a sua maior força a família e a sua reunião. Está presente a poesia (Hafez) e a mesa está colorida — melancia, romã e frutos secos são as ofertas de todas as casas.13

Para o povo iraniano, a gentileza e a hospitalidade na receção são pilares fundamentais. Será à Poesia atribuída a responsabilidade por tal modo de estar? Acredita-se que sim. A expressão abundante de tais valores na sua literatura confirma-o.14

É com este despertar que se estabelece a ligação com o mundo musical do país, com a sua dimensão simbólica.15

A paisagem sonora sofre uma metamorfose quando deslocamos a nossa atenção para o Continente Europeu. Ao nos encontrarmos com o calendário no período do Solstício de Inverno, somos presenteados com a forte simbologia dos cânticos natalícios e cheios de alegria — a população desloca-se de casa em casa, afortunando quem os escuta.16

Os pontos estruturais alteram-se agora com os últimos dois territórios. Os passados coloniais da América Latina e das Ilhas situadas no Oceano Pacífico dão a forma à expressão destas nações.

A disciplina da Fraternidade — onde descansava a música, é organizada com a chegada dos Espanhóis e Portugueses às Américas.

Dois fenómenos de extrema importância foram verificados com esta segregação e práticas. A transmissão das línguas nativas nunca se perdeu e os idiomas polifónicos encontraram nelas o seu veículo.17

 

Entrando no oceano, esta época do ano é fundamental para a proteção do que nasce nas ilhas que se tornaram colónias britânicas. Afirma-se na década de 90 do século passado que o cântico de hinos foi a prática musical mais forte nas regiões da Papua Nova Guiné e Polinésia.18

Três delícias são novamente característica da “Parada de Cânticos” que sente o seu climax na madrugada do dia 25 de dezembro de um clima tropical — oferece-se cana de açúcar, ananás e chá quente.19

3. Voltar a estar presente onde nunca estivemos

 

O processo criativo é o encontro com a alegria e o entusiasmo, com a sempre conexão com o processo e a auto permissão para experimentar, evoluir, expandir e brincar com a forma como expresso a minha mais profunda verdade.

 

Uma das principais reflexões a absorver será o facto de que se nunca mudar-mos a nossa direção, nunca iremos alcançar um novo destino.

Hans Rosling, no último livro que escreveu, estimula a sua audiência (os presentes no, e com o, Mundo?) a dar continuidade ao envolvimento que tem vindo a expressar uma maior validade à condição social e humana nas últimas décadas (por exemplo, “durante os últimos vinte anos, a proporção da população global que vive em pobreza extrema caiu para metade. Isto é absolutamente revolucionário.”20). Dá nome ao afastamento da inércia e relaxamento (involuntários?) quando resultados tão especiais como estes são confirmados em todas as realidades.

A Escuta situa-se e, acredito que, contribui fortemente para este lugar honesto. O percorrer do espaço que se concluiu numa caixinha de música tornou mais intensa e resistente a minha relação com o Mundo. As Músicas do Mundo e quem as carrega merecem o seu manifesto, e certamente a sua ressonância nas sociedades do Norte Metafórico brilhará com uma nova forma de ser e estar com o Mundo/o Outro.

 

Sem desfecho não há descanso (nem partilha?). O trabalho na Música nunca acaba. Não é possível falar definitivamente sobre Cultura.

A arte não acaba, permanece.21

Conclusões acabam por se converter em eventos agridoces por serem a terminação do que se tornou familiar e de uma identidade antiga/passada. Mas uma troca é sempre feita porque a conclusão e o iniciar são lados de uma mesma moeda, não há permissão para haver uma sem a outra. 

A ideia (de uma conclusão) consegue ser arbitrária e subjetiva — é experienciada a quietude como ela própria uma conclusão. 

 

Ao longo dos meses várias questões emergiram, e a procura pelas suas respostas tornou-se fundamental para a escrita da última parte deste projeto.

O que mais me assustava ao assumir a conclusão?

Em quem precisaria de me transformar para assumir a conclusão?

O que será celebrado com a afirmação da conclusão? O que ficará perdido?

Que novos espaços e possibilidades ficarão abertos ao assumir a conclusão?

E se cada passo no percurso se assumir como conclusão em si mesmo?