Simone convida-nos a compartilhar com o que nos estamos a manter ocupados, como forma de nos apresentarmos. Eu respondo que estou ocupada a tentar não estar ocupada numa sequência de trabalhos sobre a emergência climática e a sua influência na correlação do corpo, ele próprio ambiente, com o ambiente. Questiono-me quais os conhecimentos e as realidades que são consideradas válidas, como as estórias e histórias que herdamos e contamos sobre as alterações climáticas e o paradigma das posições hierárquicas dos humanos moldam identidades, alteridades, co-existência e influenciam imaginários políticos para esta situação mais-que-humana na qual estamos todos enredados. A questionar principalmente modos antropocêntricos de estar no mundo (enquanto mundo) e as possibilidades de dissolver as fronteiras entre natureza/cultura, mente/corpo, interior/exterior, ser humano/outro-não-humano. A trabalhar a água como condutor e conector em todo o processo, tanto nos seus aspectos físicos quanto como metáfora, que atravessa, une e interliga os corpos, a sua característica fluida,  capacidade de dissolver fronteiras ou adaptar-se e transformar-se entre vários estados.
Apoiados nas propostas de malha de Tim Ingold, a visão simpoiética de Donna J. Haraway e a hidrológica de Astrida Niemanis, o pós-humanismo, pós-colonialismo, novo materialismo, transcorporealidades, ecofeminismo, feminismo negro e estudos queer entrelaçam-se não tanto como lentes através das quais ver, mas mais como linhas que entrançam tudo junto. Para tentar estruturar e orientar tudo isto, uso um sistema de partitura a que chamo de Partitura Micelial-Fascial, e que é, em termos de aparência e função básica - uma malha misturada/confusa (mess) - muito semelhante a este documento. A principal diferença é a constante continuidade e emaranhamento mais profundo de todas as linhas, guiados por tarefas que promovem a repetição, revisitação e reciclagem de todos os materiais seja através da dança, performance, práticas ecossomáticas, vídeo, áudio, fotografia ou escrita.
Mas acima de tudo, estou ocupada a tentar não estar ocupada, a tentar não considerar o meu valor em relação ao que produzo, ocupada a tentar não estar ocupada a convidar descanso, sestas, ócio, caminhar, vagar, o não saber, a contemplação, imersão no espaço e estar presente, como actos de resistência, ferramentas para imaginar outros futuros, e como práticas artísticas em si, de cuidado e atenção no contexto de crise climática-capitalismo tardio.

Isto é, claro, muito mais do que aquilo que realmente disse quando me apresentei no workshop, mas algumas coisas são importantes de incluir aqui para tornar um pouco mais detectável algumas conexões entre a minha pesquisa artística e a experiência no CAMPING.

É complicado colocar em palavras este tipo de experiências que são tão intensas, transformadoras e que acontecem num espaço de tempo tão condensado. É mais uma das razões pelas quais escolho este formato em vez de uma estrutura narrativa linear. Passou-me pela cabeça, e até comecei por tentar, manter um formato de diário organizado por dias. Mas há uma circularidade, uma espiral(idade) nestes processos, de reflexões, realizações, questionamentos e outras direções que se entrelaçam, repetem, acumulam, e que, acredito, são muito melhor servidas pelo uso de plataformas como esta oferecida pelo Research Catalogue.
Com experiências como esta, o que se pode escrever sobre ela no momento imediato ou mesmo algumas semanas depois, só pode ser considerado, na melhor das hipóteses, como uma pequena amostra da sua real importância. Os contactos feitos agora e que só se poderão, possivelmente, concretizar no futuro, as ideias que nascem aqui, ou que são aqui alimentadas e que podem vir a dar forma ou impulso a outros projectos, as ferramentas aprendidas e/ou aperfeiçoadas aqui, todas as interconexões-em-processo que eu ainda nem consigo ver... Tudo isto só é possível graças às incríveis pessoas, instituições e estruturas responsáveis por transformar esperanças em realidade. Só posso portanto agradecer-lhes profundamente. Agradecer ao Tiago Guedes, à Ana Vicente e à Rute Pimenta do Teatro Municipal do Porto; à Lola Chalou e Chloe Perol do CND; à Maison du Portugal e à Dra Ana Paixão; ao Instituto Camões e à Embaixada Portuguesa; à ESMAE e à minha orientadora Cláudia Marisa. Obrigada, muito obrigada.

Bianca partilha connosco um pouco sobre a sua pesquisa, perco-me a observar todos estes rostos de pessoas novas com quem vou compartilhar e conhecer ao longo deste workshop. Volto e ela está a mencionar algo sobre trabalhar em algum lugar da América do Sul com alguém sobre xamanismo, de uma possibilidade de colaboração que a levou a investigar as práticas xamânicas da sua ancestralidade, o xamanismo na sociedade ocidental, parte de seu próprio passado. Depara-se com longas tradições de linhagens matrilineares, baseadas em mulheres, adoradoras da natureza, adoradoras de deusas. O que faz Bianca pensar que, na verdade, o patriarcado é apenas uma moda passageira, apenas uma fase que já dura há 2 mil anos e que vai passar, um ciclo que voltará aos seus primórdios matriarcais. Que voltará às divindades terrenas, palpáveis, não aéreas, distantes, lá em cima na cruz, fora de alcance, fora do corpo, diferente das imagens das deusas de barro que podiam ser transportadas, envoltas nas mãos, abraçadas no colo, em contato com o corpo, parte do corpo, feitas de solo, de corpo, de/da natureza. Inevitavelmente vagueio novamente, pela teoria da bolsa de transporte de Le Guin e sua a influência nos escritos de Haraway e Astrida Neimanis. Pelos próprios corpos como bolsas de águas que nos atravessam a todos, corpos que contém multitudes de tantos outros corpos fluindo constantemente uns pelos outros. Pelos métodos de contar estórias e, portanto, de história. À importância das estórias que contamos e de como elas podem mudar a maneira como vemos a história humana, de uma de soberania para uma de transportar e compartilhar num esforço coletivo através de temporalidades confusas e emaranhadas, ao contrário da história linear cheia de poderosos heróis individuais que dominam tudo. Bianca está agora a falar sobre o seu trabalho com Mala Kline, praticante e professora do Método de Imagens e Trabalho de Sonhos de Catherine Shainberg. Como exploram incubação de sonhos na sociedade grega ensinada por sacerdotisas, os rituais de jejum, a ida ao templo, as práticas feitas antes para preparar a mente para essa acção de sonhar para curar/sarar a mente e também a sociedade, para encontrar maneiras de conviver: Sonhar com novas formas de mundo.

Como percebemos o mundo? Bianca pergunta. Diferenciamos a realidade diurna e a realidade noturna. Uma como real, a outra não. Tratamos a “realidade” como algo que podemos conhecer e fixar (estruturar, estabelecer, rotular, dar nomes) e no entanto durante o sono a racionalidade e a razão dão lugar a outra coisa, a outras formas de conhecimento que fluem no nosso subconsciente. Como nos relacionamos com esse conhecimento? Podemos sonhar com a existência de um novo mundo? Pode o sono ser uma forma de resistência?

se calhar estes pertencessem a sonhadores que decidiram que não precisavam de colchões para sonhar, talvez a pessoas que já não conseguiam encontrar forças em si mesmas para sonhar novamente e em actos de frustração decidiram livrar-se das lembranças de tentar, talvez até, o Nap Ministry tenha andado por aqui, a fazer as suas performances e a convidar toda a gente a descansar, a resistir...

Dica:
Passar o cursor do rato no canto superior esquerdo faz aparecer um menu horizontal.

A "navegação" é particularmente útil.

Por enquanto pode apenas deslizar para a direita, seguindo a linha tracejada e a seta após ler o texto abaixo.

 

Duas questões que guiam o workshop de Suzan&Bianca:


1º como tornar-se um sonhador - estar presente, consciente dos sentidos
2º como podemos sonhar a existência de um novo mundo

 

               Este documento:


é a minha tentativa de resposta à necessidade de fazer um relatório desta experiência de acordo com as queridas pessoas do Teatro Municipal do Porto que me deram total liberdade em relação à forma, como tal:
está organizado - a nível de forma, conteúdos, orientação - através das relações entre esta experiência e a minha pesquisa artística. Isso deve-se principalmente aos workshops em que participei, por estes se terem continuamente revelado como extremamente sintonizados com a mesma, esta parece-me a maneira óbvia de tentar ser justa a isso. Nesse sentido:

* apresenta-se como uma malha entrelaçada de linhas de pensamento/percepção/emoção, uma malha micelial que não segue uma estrutura narrativa linear e onde a não linearidade, o perder-se, o não saber, a desorientação e o desnorteamento são favorecidos e propostos como formas viáveis de estar em relação com as coisas;

 * contém fotos, vídeos (reconhecíveis pelo botão "play" no canto superior direito), áudios que não são nem complementares nem subordinados ao texto, mas directamente emaranhados nele, a par com ele; 

 * está conectado/entrelaçado através de linhas tracejadas, sobreposição de imagens e hiperlinks como opções para navegar no documento. Assim, é possível deixar-se guiar pela justaposição das imagens, seguir as linhas tracejadas, clicar numa palavra ou frase em negrito para ver onde ela leva e a qualquer momento há sempre a opção de passar o cursor do rato no canto superior esquerdo para verificar a localização na “navegação” e usar essa opção para percorrer o documento;

* está escrito no tempo presente. Espero que isso ajude a viajar comigo e a/o coloque mais facilmente no momento que está a ser apresentado e não tanto fora dele. É uma tentativa de fazer com que não seja tanto uma reflexão a olhar para trás, mas sim uma reflexão em;

* não está otimizado para dispositivos móveis e não se ajusta ao tamanho de um dispositivo específico. Nesse sentido, aconselho vivamente que o documento seja visto num computador.

Passe o cursor do rato sobre a imagem para ler uma breve reflexão sobre a performance "gr oo ve" de Soa Ratsifandrihana

Antes de continuar a passear pelo documento como achar melhor, vou apenas explicar-lhe algumas coisas para torná-lo mais acessível. Nomeadamente umas directrizes e qual o propósito, do documento em si, e uma breve exposição de decisões tomadas ainda antes do CAMPING ter começado.

INTRO

Em 2021, apenas algumas semanas depois de defender a tese de mestrado em Artes Cénicas na ESMAE, Porto, e ainda a flutuar naquela nuvem esquisita de felicidade e vazio que o ciclo-sucção-da-alma-reabastecimento-da-alma que um processo destes pode dar, recebo um telefonema da Ana Vicente do Teatro Municipal do Porto. “Estás disponível para participar no CAMPING, CN D Pantin/Paris 2022?” É a pergunta de que me lembro melhor desse telefonema porque apesar de termos falado de outras coisas importantes, fiquei tão surpreendida que empaquei nessa pergunta e só pensava que haveria muito poucas coisas no mundo que me poderiam impedir de aproveitar esta maravilhosa oportunidade.

 

Mais de 6 meses depois, este documento está a ser organizado enquanto flutuo numa nuvem ligeiramente diferente. Uma que é, não surpreendentemente, muito parecida com a anterior, mas com muito menos memórias de angústia e dúvida, que está igualmente cheia de sonhos, imaginários e possibilidades de uma forma muito incorporada e corpórea.

Este documento é, portanto, uma tentativa de comunicar o que foram estas semanas em Pantin/Paris, mas através desta nuvem particular, tentando ser fiel a este estado em que me encontro, com todo o excesso de entusiasmo e limitações peculiares a ainda estar tão perto do acontecimento.

    

Estamos de pé, na vertical, em quietude, a energia do aquecimento a formigar deliciosamente nos meus ossos, as articulações ainda lubrificadas, os músculos prontos e a quererem mover-se novamente. Bianca orienta-nos num exercício baseado no corpo “neutro”, no corpo “zero” que aprendeu na escola de Mimo e que desde então vem adaptando juntamente com Suzan para a sua própria prática. Ouve os sons do corpo, diz ela, sente os joelhos acima dos tornozelos e, ao mesmo tempo, ouve os sons da sala. Estou a ouvir o mundo exterior, mas sabendo (ou tentando saber) onde estão os meus pés, sinto a minha respiração e (tento) sentir onde na sala está o corpo mais próximo de mim. O corpo do grupo começa a mover-se, consciente do grupo e do próprio corpo de cada um, mantemos a mesma distância para que todos os corpos fiquem equidistantes, paramos, recomeçamos a andar, paramos, recomeçamos, de novo e de novo, tudo o que acontece, cada passo em falso ou falso começo, é consciente, é reconhecido e assumido, sempre com energia, sem viajar para dentro ou fechar-se, os olhos não estão opacos e vazios, não estão a olhar para o infinito, estão num corpo que fica no “meio”. É aqui que a performance começa, diz Suzan, neste momento de estar no meio, duplamente consciente do interior e do exterior. Estar presente nesse meio é honestamente difícil, habitar esse espaço fronteiriço que exige um super estado de foco e concentração. Falho com frequência e percebo que estou no que parece ser um jogo de ping-pong em que ou estou dentro ou fora, ou ouço ou sinto, ou vejo ou tenho consciência. Às vezes sinto que estou a conseguir, que sou mais como um io-io, que posso esticar os sentidos para longe enquanto mantenho o fio conectado, navegando neste dentro-fora, capaz de puxá-lo de volta, mas noutras é como se alguém cortasse o cordão e eu ficasse de pé com uma corda desconectada em volta do meu dedo e um io-io perdido algures no espaço. Ajuda, como geralmente acontece com estas coisas, não olhar para isto como uma incumbência, uma obrigação imposta, mas sim um jogo. 

Paramos novamente de nos mover, estamos em imobilidade, verticalmente, estamos cada um de nós a esvaziar o seu corpo, sentindo-o escorrer pelo chão, tornando-se “neutro”. Fecha os olhos se estiverem abertos, Suzan, ou Bianca, ou Klara dizem e sugerem que uma substância está a começar a subir pelos pés, tornozelos, pernas, é água com gás, água borbulhante, champanhe, subindo pelas ancas, tronco, ombros, rosto, sente o rosto, não de fora, mas de dentro, abre os olhos, qual é o olhar da água com gás? Olha através desses olhos. Continuamos a fazer variações disto durante toda a semana, com diferentes substâncias, diferentes corpos, enchendo completamente o corpo de um corpo, procurando como podemos viajar para outro corpo, transformar noutro corpo. E o que começou no início da semana como algo muito vistoso e muito mais uma representação do que a sensação disso, torna-se progressivamente mais subtil até chegarmos ao meu favorito, uma improvisação em grupo sobre estar presente em/como grupo. Ser um corpo-grupo. É muito esclarecedor fazê-lo desta forma, com uma tarefa “simples” como caminhar (em comparação com improvisações de dança em grupo com indicações complexas) porque é mais fácil perceber quando se está realmente presente, permite uma compreensão mais profunda do impulso automático de simplesmente reagir ou, em vez disso, escolher, tomar decisões a partir desse estado de percepção. Porque os corpos do corpo-grupo também se respeitam, não vão apenas atrás, também contribuem. Estas ferramentas para estar presente são importantes para a prática da performance, mas também para conectar com, para fazer comunidade.

with Klara Alexova guiding us through sound journeys (spoiler alert: covid-19 shows up again, it really does want to attend the event)

Algumas decisões tomadas previamente:

  Vou para o CAMPING em Pantin / Paris  nas duas semanas do evento, mas chego uma antes para desfrutar de me perder por Paris

Tenho a opção de escolher 2 workshops da lista de - que me parece 10 mil "quero fazer tudo" - opções, cada workshop consiste num conjunto de cinco sessões de segunda a sexta-feira. Escolho Dimitri Chamblas (alerta de spoiler: o covid-19 vem sem ser convidado e há alterações que têm de ser feitas) e Simone Aughterlony. 

Também posso escolher e comprar bilhetes para espectáculos, compro para todos e espero amar alguns, encolher-me com outros e apr(e)ender com todos. 

Pequenos-almoços e almoços também estão incluídos e, felizmente, há opções sem ingredientes de origem animal. Isto pode não parecer nada de extraordinário, mas para mim faz toda a diferença em termos do quão relaxada e focada posso estar no momento sem ter que me preocupar com o que/quando/onde poderei encontrar comida nutritiva sintonizada com a minha ética pessoal. 

Estou a dormir na Maison du Portugal - Andre Gouveia na Cité Internationale Universitaire que por estar localizada no extremo sul da Périphérique me dá a oportunidade de observar/absorver enquanto atravesso a cidade de norte a sul. 

Tudo foi previamente pensado, cuidado, tratado, arranjado por tantos para que as únicas coisas com que tenha de me preocupar seja gerir o dinheiro, aparecer em Pantin e aproveitar. 

E é isso que faço.

Paris apresenta-se para mim como uma quimera, um organismo composto de partes muito diferentes e completas que funcionam juntas. Isto, pode-se dizer, é comum em qualquer grande cidade, e até nas menores, mas em Paris, neste momento, isto parece-me mais potente tanto na Paris turística quanto nos lugares que me continuam a puxar de volta a eles como La Chapelle, Chateau d'eau e a própria Pantin.

com Colin&Farahnaz do sónico Studio LABOUR

Dimitri Chamblas testa positivo para covid-19 na manhã em que o CAMPING começa e é necessário mudar a escolha do workshop para a primeira semana. Na altura em que escolhi estava com bastantes dúvidas entre o do Dimitri e o de Suzan&Bianca, então acho que posso dizer que, no final, o acaso escolhe por mim. Não posso dizer que esteja feliz, já que não me sinto bem com uma situação que envolve alguém ter ficado doente e não tenho ideia do quão teria gostado do workshop de Dimitri se tivesse participado nele. Posso admitir a possibilidade de encontrar muitas conexões e reverberações com a minha pesquisa artística lá também, mas agora que estou a participar no de Suzan&Bianca, não consigo imaginar nada melhor do que isto para este exato momento.

Quimera: criatura/figura mitológica de 3 partes, cabeça de leão, corpo de cabra, cauda de dragão
Fenomenologicamente: sonho louco, delírio, noção, fantástico, infundado, impossível
Biologicamente: um único organismo composto de células com mais de um genótipo distinto, como certas plantas ou animais, humanos e não humanos com genomas gêmeos não nascidos
Não linear
Não coeso
Sentido irregular de tempo
Coerência = Incoerência (em coexistência) – contradição como conteúdo – utopia no horizonte
Todos os materiais como corpos - hierarquia ontológica plana
Quimera, explica o inexplicável, classifica o inclassificável
Combinação de várias partes completas que formam um todo completo
Fazer tudo encaixar com consciência de cuidado
Quimera como queerness. Quimera, uma visão para a qual caminhamos e que na proximidade desaparece, como uma miragem - trans-realidades

Domingo, dia de uma pausa muito bem-vinda do CAMPING antes da segunda semana começar, dia de piquenique no parque da Cité, dia de lavar a roupa, uma hora de lavagem, uma hora de secagem, repetir a secagem porque ainda está húmida, estou alegremente preguiçosa e sonolenta, alguém passa por mim e fazemos aquele típico olhar duas vezes de quando não se tem certeza se a pessoa é conhecida ou não. É conhecida. Conhecemo-nos em Milão um mês antes, no Duemila30 International Sustainability Film Festival, um festival de curtas-metragens no qual ambas fomos selecionadas como finalistas. Na altura comentámos que íamos estar em Paris ao mesmo tempo e desde que cheguei que temos tentado encontrarmo-nos, mas sem sucesso. E agora percebemos que estamos a dividir alojamento sem sabermos. Quais são as hipóteses?? E assim passamos o resto da tarde, a esperar pela máquina de secar, a conversar no jardim da Maison. Parece que a Maison du Portugal tem tendência para encontros assim, para momentos serendipitosos. E esses são sempre os melhores lugares para se estar.

A estrutura do workshop de Simone é-me muito natural, parecida com a forma como eu procuro relacionar diversos materiais e como gosto, idealmente, de colaborar. Começamos por nos mover livremente, em conjunto mas “movam-se como vocês sentem que precisam de se mover para aquecerem, para estar aqui”, com ou sem a proposta de um conceito por parte de Simone para mantermos presentes enquanto o fazemos. Segue-se uma conversa, quer sobre o que acabámos de fazer - caso tenha surgido algo que valha a pena mencionar -, sobre o que os artistas sonoros estavam a fazer, o que fizemos no dia anterior e/ou o que faremos hoje. Hoje Simone pede-nos para mantermos "a ideia de besta e soberano presente” enquanto aquecemos. Às vezes é algo que nos permite explorar o que terminámos no dia anterior, outras é algo aparentemente desconectado do que estamos a trabalhar. Ainda não mencionámos a “besta” e o “soberano”, mas como trabalhamos com a característica quimérica do movimento do ovo e já sabemos que o conceito geral da oficina é a quimera, é mais fácil explorar esta nova ideia para esta sessão de movimento, dentro do contexto. 

Ler em conjunto uma passagem do livro de Jack Halberstam “Wild Things – The Disorder of Desire” sobre Perplexidade e as dimensões de Soberano/Besta,

assistir ao vídeo de Fred Moten “Sobre a violência”,

andar/sentar/deitar no espaço para ouvir conscientemente o que está a ser desenvolvido no momento pelos artistas sonoros em síntese sonora digital, composição algorítmica e/ou psicoacústica, 

conversas coletivas e explorações de movimento, 

são todos intrinsecamente tecidos neste processo. Tudo se junta muito organicamente, teoria-práxis, poético-político neste processo de aprendizagem e criação que está a acrescentar tanto à minha própria prática.

Tenho estado a trabalhar em, e chego ao CAMPING, com/como este corpo mais-que-humano, poroso, líquido e plástico. Este corpo ao mesmo tempo único, mas corpo-malha, corpo-emaranhado, constantemente implicado em co-relação e interdependência, com/em/como tantos corpos num fluxo constante de processos, afetações e (de)composições,

Ao clicar as imagens abrem em tamanho maior

com Suzan&Bianca sobre/com/como o corpo “zero”, o corpo “neutro” capaz de imaginar todos os outros corpos e incorporar todos, “presente no mundo interior-exterior simultaneamente”,

com Simone sobre/com/como o corpo quimérico “reconhecível nas suas partes díspares, mas constituindo um todo impossível”.

Todos esses corpos juntam-se e fornecem trans-dimensões uns aos outros, às vezes sinto-me incrivelmente próxima e completamente discrepante deles, mas eles ressoam sempre e começam a, lentamente, entrelaçarem-se uns nos outros.

São 23h da noite anterior ao check-out da Maison du Portugal e como saio sempre de manhã cedo, chego tarde à noite e me esqueci completamente que tinha de perguntar a alguém o que fazer com a chave depois de sair, agora não sei o que fazer. O guarda noturno está aqui, mostro-lhe o texto que tenho estado a escrever com a ajuda do tradutor no telemóvel - o meu francês não é bom o suficiente para isto, principalmente não a esta hora - que explica a situação. Ele ri-se sem maldade e aponta-me na direção de alguém que está, naquele exato momento, a passar. E quem é senão a Dra. Ana Paixão, a directora da Maison que tem respondido amavelmente aos meus emails e certificado-se que tudo corre bem com a minha estadia. É claro que a solução que ela me apresenta é óbvia e simples, não havia necessidade de deixar meu cérebro privado de sono preocupar-se com isto, mas a serendipidade deste momento é que devido à programação do CAMPING ainda não tinha tido a oportunidade de a conhecer, e é bom pôr um rosto no nome e poder agradecer-lhe pessoalmente.

Como explicar o CN D? E o CAMPING? Tento começar pelo CN D e presumo que o CAMPING irá surgir. 

Imagine um edifício totalmente e completamente dedicado à coreografia em todas as suas formas e feitios, com tantos estúdios de dança que até ao último dia ainda me perco a tentar chegar às aulas matinais (o meu sentido de orientação é capaz de não ser dos melhores), imagine que alguns desses estúdios são gratuitos para profissionais e não profissionais, estúdios dedicados a ensaios, pesquisa e aprendizagem, um estúdio de “saúde” para alongar, aquecer e cuidar do corpo dolorido de toda a dança que tem sido feita, espaços de co-working onde a qualquer hora do dia há pessoas sentadas a teclar, vários bebedouros em cada andar com água tão fresca que ainda consigo sentir o arrepio que me sobe pela espinha cada vez que bebo deles, e já mencionei uma das melhores mediatecas dedicadas à dança da Europa, um extenso arquivo de recursos para profissionais ou a presença da livraria itinerante Books on the Move? Que, devo acrescentar, me obriga a enviar uma encomenda de livros para casa que simplesmente já não cabem na minha mala! Um lugar que favorece a troca e a pluralidade, que é acolhedor e estimulante para a dança, o teatro, a arte performativa, as artes plásticas, a filosofia, o cinema etc.

Agora junte a tudo isso 2, por vezes 3 apresentações por dia de espectáculos de dança, encontros diários com pessoas que ajudam com entusiasmo a navegar os tais recursos profissionais acima mencionados, que respondem a todas as perguntas e orientam na direção certa, adicione a opção de ter uma consulta por um preço simbólico com fisioterapeutas do Institut National du sport ou que trabalham com companhias de dança, almoçar a observar o canal enquanto conversa alegremente com todas as novas pessoas que conheceu, aulas matinais orientadas por alunos (são 300) das cerca de 30 escolas convidadas de todo o mundo, aulas semanais gigantescas onde todos os participantes se reúnem no átrio para partilhar uma técnica ou género específico, mais de 30 workshops com coreógrafos e criadores de renome, duas grandes festas para ajudar a conviver ainda mais, workshops diários gratuitos para amadores que dão uma ideia do quão diversificado e acolhedor é este lugar mesmo quando o CAMPING não está a decorrer, um lugar tão inclusivo que mesmo na cosmopolita Paris, ou apesar disso, sente-se que se pode realmente respirar quando se entra. Desculpe, esqueci-me de mencionar, quando estiver a imaginar este lugar mágico, lembre-se que eu ainda estou a flutuar na nuvem previamente referida e saiba que tenho tendência para romantizar e exagerar tudo. Mas ainda assim, mesmo considerando isto, este lugar parece incrível, não é? Isso é porque é mesmo.

A quimera como algo no horizonte, delirante, uma miragem em oscilação, incoerente e coerente, cintilante, tremeluzente, para lá e para cá, para trás e para a frente, criando uma ilusão que nos faz parar em perplexidade.

* Violência é um termo complexo e a forma como nos referimos a ele precisa de ser redefinida. É também, por exemplo, uma prossecução vigorosa de algo; 

* A violência como recusa da brutalidade, das forças brutais da individuação. Violência contra a individuação; 

* Individuação: a criação do sujeito por forças externas; 

* Mess/mass (mistura/confusão em massa): desarrumada, festa/festival, comemorativa, exaltação, reunião de diferenças, celebração em massa, reunião entusiástica, envolvente; 

* Recusa a ser singular; 

* A comunidade é definida por aqueles que exclui.

Depois de todas as introduções, apresentações e discussões dos conceitos, uma caixa de ovos trazida por Simone é o primeiro material com que estamos a trabalhar neste workshop. Observamo-los, tocamo-lhos, pomo-los em rotação para ver como se movem. O mais evidente é sua a aleatoriedade e imprevisibilidade, também nunca se movem em linha reta, estão sempre a inclinarem-se e a fazer curvas, por terem um ponto de contato tão pequeno com o solo parecem estar em constante movimento, ou em potencial para movimento/suspensão, o líquido dentro do corpo influencia a continuidade do movimento (pelo peso) mais notoriamente do que o do corpo humano. Exploramos essas noções em movimento, não estamos a tentar tornar-nos ovos, mas assumir a sua lógica de movimento. Colin and Farahnaz estão a trabalhar com síntese granular, às vezes soa como os sons de dentro de um ovo, outras com mais swoosh, mas sempre errático. Quando os ovos entram em contato uns com os outro o efeito desse contato é mais perceptível do que entre os corpos humanos - que são ao mesmo tempo mais pesados e mais macios - há uma reação mais direta do contato em movimento, é imediato, mesmo ao menor toque. Por trabalharmos sempre em grupo, isso torna os nossos movimentos suaves sem a performatividade da suavidade porque estamos a cuidar da massa na mistura/confusão (mess), não nos queremos magoar uns aos outros, somos frágeis, não queremos quebrar, esta co-existência é atenta. Um ovo, aparentemente, é uma quimera pela sua forma que, por sua vez, influencia o modo muito característico do seu movimento. Há também algo de devir nos ovos, antes da individuação. Depois deste primeiro dia, sempre que improvisamos juntos é em/como uma grande assembleia que procura o contato sem as promessas de acoplamento de individuação - uma reunião complexa de diferenças, uma mess.

Uma das minhas características favoritas da maneira de Simone se relacionar connosco fica clara pelas conversas que temos em grupo. Porque não é tanto Simone a falar e nós a ouvir, dando-nos apenas contexto, explicações ou instruções, mas mais como um fórum, como um processo de criação coletiva. E isso acontece ao longo de todo o processo, com propostas de todos sobre o que poderíamos fazer a seguir e como, perguntas que são colocadas e respondidas por e para todos e não exclusivamente por Simone. Isso faz com que eu, nós, nos sintamos parte integrante do processo.

Fico em Paris por mais um dia para poder ir ao Pride e a energia é tão parecida que podia ser a festa final do CAMPING da noite anterior. Claro que não em termos do enorme volume de pessoas e da importância histórica e as suas origens e as razões da sua existência contínua e a marcha e os gritos de ordem… mas ambos têm a mesma qualidade especial de união, exaltação, mistura/confusão (mess) em massa (mass).

Tenho passado muito tempo aqui com os olhos fechados. Nas aulas matinais, nos workshops da tarde e até nas performances onde somos especificamente convidados a fechar os olhos. Eu gosto de andar na rua com os olhos fechados, mas só se me sentir segura, nunca é um jogo de risco em si, porque é apenas por curtos períodos de tempo se estiver a andar em linha reta numa rua vazia. Mas aqui é como se toda a gente continuasse a incentivar-nos para isso, para confiar, o que é, para mim, mais um convite para descansar, para ver ver com os olhos fechados, para olhar com mais do que os olhos, para outros modos de conhecimento.

O que me parece ser um dos aspectos mais interessantes no workshop de Suzan&Bianca é a sua constante procura e questionamento das possibilidades performativas de tudo que está a ser feito. Qualquer exercício evolui para um material com potencialidade para ser apresentado a público, pelo menos no sentido de como é pensado e desenvolvido pelas orientações propostas e comentários oferecidos. Isso permite-nos ver e fazer parte do processo artístico em ação, como elas resolvem/desbloqueiam/expandem algo de uma forma muito clara.


É, nesse sentido, distinto do de Simone onde a perspectiva performativa (em termos de potencial para apresentação pública) raramente é comentada ou o ponto principal. Se perguntado diretamente por qualquer participante “como usarias este material para uma performance?” Simone pensa e dá uma resposta honesta e/ou convida alguém do grupo para dar a sua opinião (trata-nos sempre a todos como colaboradores, co-criadores compartilhando conhecimentos e experiências) mas isso não é o cerne do que estamos a fazer. Com Simone, sinto que ainda estou nos estágios iniciais de um processo, a testar e a provar, a ver onde os conceitos e movimentos nos levam sem muita consideração ainda pelo aspecto de apresentação.

 

Não estou de forma alguma a comparar estas diferentes abordagens de forma depreciativa, são diferentes e ambas muito úteis. Uma e outra compartilham uma base comum de generosidade, abertura e honestidade connosco que as torna inclusivas e respeitadoras do princípio de que todas as partes envolvidas compartilham e recebem algo com isto.

Hoje a Bianca pede-nos para trazermos um objeto que esteja partido, algo pessoal, algo que está danificado e/ou que tenha perdido o uso. Sentamo-nos no círculo habitual ao redor da sala e escrevemos num pedaço de papel A4 branco uma palavra, seja “mundo”, “eu” ou “como”. Cada um de nós levanta-se à vez, mostra o papel para todos e coloca-o no centro, com cuidado para criar outro círculo com os papeis enquanto se constrói a frase “mundo como eu como mundo como eu como mundo…”. Também à vez, um por um, entra no círculo feito pelos papeis e conta sua estória, as suas memórias da visualização guiada de ontem, a da casa na floresta com um corredor cheio de portas, a da porta para um quarto com caixas, a caixa que vimos e o objeto partido que encontramos dentro dela. Como está partido? Como era quando estava completo/inteiro? Consegues consertá-lo? Consertas? A Bianca propõe uma variação “não te preocupes em contar-nos a história a nós, conta para o objeto nas tuas mãos”. E outra “fala como se o objeto que tens agora nas mãos fosse aquele que encontraste na caixa ontem”. 

“Podes falar na tua língua materna se preferires e alguém traduza para inglês, por favor” 

“Podes falar de uma forma muito íntima e quem traduz depois fala em voz alta” 

“Se a tua língua materna é o inglês, alguém pode traduzir para francês?” 

“Se vocês entendem a língua da pessoa que está a falar no centro, podem traduzir na vossa própria língua?” 

“Não esperes pela tradução, continua. Quem está a traduzir, não esperem uns pelos outros, traduzam o que ouvirem, alto ou baixo, continuem.” 

Esta dinâmica de cântico, de liturgia que é criada pelo apoio do grupo transforma algo muito pessoal, individual, “fechado” em algo aberto, partilhado, comum. Também transforma a relação com o objecto em algo universal. Ao descrever o que se viu antes, falando diretamente para o objeto pessoal que está nas mãos, referindo-se a ele como se fosse o outro, possibilita que seja qualquer outro, qualquer um de tudo que está partido, qualquer coisa, tudo.

Ouve-se um “ding” cada vez que alguém entra na pequena farmácia e por alguns minutos um ding, ding, ding, ding contínuo compõe a paisagem sonora de mais de 20 pessoas a formarem fila do balcão até à rua. Alguns de nós riem-se nervosamente da situação, fazem piadas, compartilham estórias de Covid, outros fazem scroll enfadonhamente nos seus telefones e esquecem-se de colocar as máscaras no sítio quando estas deslizam insistentemente para baixo, outros estão genuinamente preocupados e murmuram “Eu não posso testar positivo, tenho um espectáculo neste fim de semana” ou “Eu tenho que voar de volta para casa em 3 dias, não posso ficar empancada aqui, não de novo”. Felizmente eu estou bastante confiante de que vou testar negativo, pois recuperei da minha primeira experiência com covid-19 apenas duas semanas antes de vir, e o que realmente me está a chamar à atenção neste momento é que excelente performance tudo isto é, desde o momento à porta do estúdio 4 até este ponto, quando o dono da farmácia se oferece para nos testar a todos gratuitamente.

Na minha memória, um edifício deste tamanho tem, normalmente, as escadas como o principal conector entre andares. Também costuma haver elevadores, sim, mas as rampas, quando presentes, são na maioria das vezes pequenas e pobres alternativas às escadas e não seus pares. Em conversa com um membro do grupo de dança inclusiva Dançando com a Diferença e ao mencionar o quanto adorava estas enormes rampas, ela suspirou “não fazes ideia do quão revigorante isto é”. E não faço, não faço mesmo, e no entanto consigo sentir, mesmo que de uma maneira diferente, como esta abordagem não tão simples à mobilidade faz com que todo o edifício pareça muito mais como um movimento contínuo que somos convidados a fazer, a participar com.

No final, devido a alguns casos positivos, alguns negativos que não querem arriscar mais e o facto da Suzan estar ausente a fazer um espectáculo na Alemanha, o nosso dinâmico e diversificado grupo fica reduzido a uma dúzia de pessoas. A colega que escrevia nos seus cadernos já não faz mais parte do grupo. Estas quebras mudam definitivamente a energia e, consequentemente, a direção do workshop. Da estrutura que elas compartilharam conosco no início, e que consiste em:

 

  • Reconhecer o que está partido/estragado 
  • Preparar a mente/corpo para a cura - ritual de preparação 
  • Fazer a cura: performance como um lugar para transformar

Chegou agora a altura de começar a dar forma ao corpo quimérico no workshop de Simone. Três pessoas, uma a criança, uma a besta, uma o soberano a moverem-se como um e o mesmo organismo. Algumas perguntas ocorrem: 

Como manter a autonomia, a forma concreta, não assimilando o outro na mistura/confusão (mess)? 

Como fazer parte da massa (mass) e não ser assimilado? 

Diferentes partes do mesmo organismo não é o mesmo que um organismo plural. 

Qual é a cola? O material de ligação, como mantemos as coisas juntas, o que nos une em togetherness? Isto também é debatido quando fazemos a miragem, mais no sentido da cola como a transição e nesse caso é mais fácil porque o corpo, naturalmente, devido à repetição e ao esforço, proporciona uma transição orgânica. Talvez a nossa maneira de abordar isto seja tentando ser mais sensíveis a receber, mantendo a receptividade que acabámos de experimentar com o exercício dos artistas sonoros. Na quimera de que faço parte, isto funciona particularmente bem e, embora para mim seja sempre muito fácil voltar à zona de conforto da semi-amorfologia, conseguimos manter três partes diferentes do mesmo organismo criando algo juntos, movendo-nos no espaço.

Subo a rampa para o segundo andar na esperança de marcar a reunião com os recursos profissionais e desfrutar de alguns minutos de tranquilidade numa das áreas de descanso à porta do estúdio 4 onde decorre o workshop de Suzan&Bianca. Há algumas coisas sobre o exercício de ontem com elas que preciso de escrever para processar. Sento-me ao lado de uma colega que também está a escrever, curvada sobre os seus cadernos. Mais pessoas começam a chegar e só então me apercebo que uma das mulheres que geralmente verifica os nossos nomes no início de cada sessão da tarde está parada à porta com um ar relativamente sério. Alguém testou positivo para covid-19. A Klara que ainda ontem nos presenteou com a incrível experiência da viagem sonora. Precisamos todos de fazer testes. Agora. O CN D já combinou com uma farmácia próxima. Podemos comprar o auto-teste ou pagar para que eles nos testem lá. Mais pessoas chegam e variações disto repetem-se várias vezes: surpresa, preocupação, uma aceitação rápida devido ao hábito, procurar dentro de malas e bolsos por uma máscara, formar uma fila, esperar. Descemos a rampa, passamos pelas portas e atravessamos a rua, algumas pessoas olham mas rapidamente voltam ao que estavam a fazer antes, ver uma fila de pessoas com máscaras não é novidade, só não tinha ainda acontecido na edição deste ano mas em breve poderia acontecer outra vez.

Acabamos por não completar a parte final, a cura em si, o ritual de reparação no qual apenas tocámos ao de leve ontem.

Os vários rituais de preparação que temos vindo a desenvolver - estar presente através dos exercícios do corpo “neutro” e as diversas visualizações guiadas - também perdem uma parte essencial sem a presença da Klara para nos guiar em mais viagens sonoras. 

 

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Uma massagem profunda, todo o corpo a vibrar, a libertar, a soltar-se, completamente físico sem nenhum contato corpo a corpo, sem pele a pele, mas em contato através das vibrações do som. E sem estar racionalmente a pensar em algo específico, não na frase/intenção que deveria guiar a sessão “Eu vejo-me como o mundo, e vejo este mundo como ele é”, vi cores e formas a moverem-se, expandindo, contraindo, a explodir e a dançar, luz por trás das pálpebras fechadas. Tentáculos de medusas, emaranhandos, conectando, entrançando juntos,escorregando e deslizando uns nos outro, pulsando em constante movimento, quietos e permanentes, invisíveis, mas perceptíveis. Às vezes como fogo de artifício, ou uma noite estrelada, mas suave, ou com estrondo, apenas impulso ininterrupto de conectar, de reunir e estar juntos, como sempre. Muitos flashes brancos, mas também roxos, violetas e lavandas, alguns brilhantes ou desbotados. A moverem-se como água, como uma superfície de água, rápido, mas também água profunda, movendo-se lentamente, como uma pasta, com plasticidade e corpo, como um gel de corpos deslizando. Ferramentas incríveis com as quais estou a aprofundar a minha experiência aqui.

Esta tarde começa com um exercício proposto pelos artistas sonoros Colin e Farahnaz. Propõem que façamos duplas e por 20min, um de cada vez, exploremos o edifício do CN D de olhos fechados. Depois trocamos de posições. Isso está a acontecer exatamente no mesmo dia em que ainda esta manhã, por pura coincidência, estava a caminhar de olhos fechados pelo canal de Pantin. Aqui a ideia é ser mais autónomo, o parceiro só está lá em caso de necessidade e para evitar acidentes graves. O objectivo é prestar mais atenção ao som. Eu agacho-me debaixo de mesas e sinto-me segura, rebolo no chão sabendo que não há como me aleijar, o meu parceiro nunca deixaria que isso acontecesse, noto as diferenças de som quando me aproximo dos escritórios da administração do CND - na conversa pós-exercício alguém comenta sobre a política do som, que quanto mais próximo dos espaços de administração e direção do CND menos barulho há, mais calmo fica - e como no geral o som ganha densidade com os olhos fechados, mas acima de tudo eu bato e tropeço a subir as escadas, mas deslizo por rampas e começo a descobrir que a razão por trás do meu fascínio por elas está ligada à minha pesquisa sobre fluidez e continuidade líquida. As rampas permitem um movimento contínuo enquanto que as escadas uma interrupção, o movimento em rampas pode ser feito com segurança e rapidez mesmo com os olhos fechados, permitindo uma entrega sem esforço à gravidade.

Aula matinal com alunos da Escola de Imagem de Poitiers, a descrição não revela muito, mas menciona Tim Ingold, por isso estou curiosa e entusiasmada. Começam por partilhar connosco todo o contexto conceptual, inspirado por muitos pensadores/fazedores, que sustenta a aula. Como o “eu” subjetivo se torna o “nós” subjetivo? Como a poesia não é uma ferramenta para entender o mundo - o mundo é incompreensível - mas para construir uma ponte, um lugar num lugar, para estar no mundo. Como a poesia não é um luxo, mas uma necessidade: “A poesia não é um luxo. É uma necessidade vital da nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual predicamos as nossas esperanças e sonhos em direção à sobrevivência e à mudança, primeiro transformada em linguagem, depois em ideia e depois em ação mais tangível” Audre Lorde. Como encontrar a poética no ambiente com movimento, como os dois artistas que eles mencionam e cujos nomes não apanho, que pedem aos participantes de uma das suas ações que caminhem por bairros observando os pequenos detalhes, que estejam abertos e olhem para tudo, dêem atenção ao mundo. E assim começamos a caminhar pelo canal de Pantin, em pares, um de nós de olhos fechados, sentindo Pantin, confiando que o outro cuidará de nós, com a certeza de que é seguro relegar o domínio do visual.