Os relatos apresentados revelam camadas de uma profunda relação entre a experiência sonora, a memória e a formação da identidade socioespacial, dialogando diretamente com as reflexões de Schafer (2011). Além disso, Schreiber (2010, p. 473) destaca que "o som tem não apenas vida biológica, mas também social", reforçando a importância do som como fenômeno multidimensional que permeia tanto o indivíduo quanto a comunidade.

No Relato 1, o foco na repetição dos sons e músicas típicas em diferentes locais do município de São Bernardo evidencia uma constante presença cultural que reforça identidades regionais. Essa vivência sonora coletiva está alinhada com a ideia de Schafer (2011), que ressalta que o homem produz sons para afirmar sua existência e evitar o silêncio absoluto, símbolo da rejeição da personalidade humana. Nesse contexto, o ambiente festivo regional não apenas preenche o espaço com sons, mas reafirma a presença social e cultural das pessoas.

O Relato 2 aborda a experiência individual de deslocamento e a busca por referências por meio dos estímulos sonoros e táteis, como o toque nas fechaduras e cadeados que evocam memórias de lugares conhecidos, como as mercearias do bairro. Essa busca pela orientação e reconstrução mental do espaço reforça o argumento de Medeiros (2023), para quem "assimilar os diversos sons da paisagem contribui ao entendimento socioespacial, uma vez que reflete passado e presente, escolhas e condições." A angústia sentida na ausência de referências sonoras reforça o papel dos sons como elementos fundamentais para a segurança e o sentido de pertencimento.

No Relato 3, a complexidade do espaço da Vila Rica como lugar transitório onde várias interações acontecem revela uma diversidade sonora e social significativa. As diferentes atividades e interesses das pessoas — desde consertos simples até momentos de lazer — criam uma pluralidade de sons e discursos que refletem as múltiplas "verdades" e posições de mundo presentes naquele espaço. A observação dessas dinâmicas está em consonância com Sterne (2012), que destaca que a sociedade molda o comportamento sonoro do homem e que esses sons, por sua vez, influenciam e transformam esse comportamento. Assim, o espaço não é apenas um contexto físico, mas um palco da interação social e sonora que constrói significados e identidades.

Em suma, a experiência nos aproxima da compreensão de que o som é um elemento estruturante da experiência humana, fundamental para a construção da identidade social, a orientação espacial e a interação comunitária. O som não só preenche o espaço físico, mas também o simbólico, contribuindo para a memória coletiva, a vivência social e a percepção das múltiplas realidades presentes nos lugares imbu[das nas narrativas dos participantes.

Para a realização da experiência, os participantes foram vendados — ou orientados a manter os olhos fechados — com o propósito de suspender a percepção visual convencional e, desse modo, aprofundar a imersão nos sentidos remanescentes, especialmente o tato e a audição. Inicialmente, aplicou-se uma técnica de desorientação espacial, na qual os participantes eram girados em torno de si mesmos por cerca de três vezes, intensificando a ruptura com o referencial visual.

Em seguida, guiados pelos membros da equipe, eles percorreram um trajeto previamente mapeado no Inferninho, sendo incentivados a explorar o ambiente por meio do toque. O percurso possibilitou o contato com uma ampla variedade de texturas — que iam de materiais brutos a superfícies urbanas —, ampliando a experiência tátil e a relação sensorial com o espaço.

Optou-se por essa abordagem a fim de privar os participantes da referência visual prévia que possuíam do local, estimulando, assim, a ativação de sentidos menos usuais na percepção do espaço, como o tato e a escuta.

REFERÊNCIAS

MEDEIROS, Ugo Pate. As paisagens sonoras como ferramenta no despertar geográfico. Giramundo: Revista de Geografia do Colégio Pedro II, v. 10, n. 20, p. 95-102, 2023.


STERNE, Jonathan. The sound studies reader. Routledge, 2012.


SCHAFER, R. Murray. A Afinação do Mundo - uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Trad. Marisa T. Fonterrada. 2a. ed. São Paulo: UNESP, 2011a.


SCHREIBER, Ewa. Metaphors of Sound: Cognitive Aspects in the Theories of Pierre Schaeffer, R. Murray Schafer and Gérard Grisey. GMTH Proceedings 2008, v. 4, p. 467-479, 2010. Disponível em:https://www.researchgate.net/publication/358945141_Metaphors_of_Sound_Cognitive_Aspects_in_the_Theories_of_Pierre_Schaeffer_R_Murray_Schafer_and_Gerard_Grisey. Acesso em: 7 out. 2025.


Participante 1 - Quando me concentrei no aspecto sonoro, senti-me em qualquer lugar do município de São Bernardo, sobretudo pelo padrão das sonoridades presentes. Nossa cultura é constantemente permeada por essas músicas, bem como pelos sons de pessoas conversando de maneira alegre e exaltada, característicos do ambiente dos bares. Esse clima festivo regional se repete de forma recorrente, com as mesmas músicas e ritmos, revelando identidades locais que se mantêm vivas, independentemente da parte do município em que se esteja.

O conceito de espaço transitório vai além de um local físico de passagem. Ele se configura como um espaço de trânsito entre pessoas, marcado pela interação e convivência social. O trânsito, nesse sentido, é visto como um dos maiores espaços de socialização urbana, onde indivíduos com objetivos e necessidades distintas negociam o uso do espaço compartilhado.


Participante 2 - No início da atividade, ao me deslocar, percebo que não consigo me desvincular completamente das referências anteriores, pois, ao chegar a um determinado local, carrego comigo uma experiência visual e uma vivência pessoal prévias. Quando perco meu referencial, minha reação imediata é buscar me situar por meio dos estímulos ao meu redor. Por exemplo, ao tocar uma fechadura, tento reconstruir mentalmente o espaço, esforçando-me para identificar o ponto exato onde me encontro. A ausência dessa informação gera uma sensação de angústia. No entanto, essa falta de referência também desperta associações com outros lugares que apresentam semelhanças com minhas lembranças vagas — como quando, ao tocar os cadeados e fechaduras, fui imediatamente remetido às mercearias do meu bairro.

Participante 3 - O espaço da Vila Rica revela uma complexidade própria enquanto lugar transitório, onde pessoas com interesses diversos circulam e interagem com uma variedade de serviços disponíveis. Esse contraste nas interações intensifica a pluralidade do ambiente, como o senhor que busca o sapateiro para um simples conserto, enquanto o indivíduo ao lado procura uma cerveja para se divertir de modo descontraído. Essa multiplicidade se manifesta com particular nitidez no âmbito sonoro, pois cada pessoa traz sua própria perspectiva e posição de mundo, evidenciadas na fala e nas expressões. O espaço vai além de um local de passagem ou permanência: é um cenário para presenciar encontros de forças aparentemente opostas, como o senhor que cortava cabelo e outro que caiu no chão, ambos observados atentamente enquanto emitiram grunhidos.