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APRESENTAÇÃO
Este trabalho resulta de uma atividade vinculada à disciplina Epistemologia da Cultura, no âmbito do Mestrado Interdisciplinar em Dinâmicas Sociais, Conexões Artísticas e Saberes Locais da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. A proposta, ainda em curso de escrita, insere-se no campo da pesquisa artística, concebida como metodologia que emerge da prática e da vivência, produzindo conhecimento a partir da experiência situada.
O Farol da Educação de São Bernardo – MA constitui-se aqui como patrimônio cultural e, ao mesmo tempo, como espaço de criação, memória e reflexão, em que corpo, espaço e história se entrelaçam em percursos de ressignificação.
Referências
BORGDORFF, Henk. The Conflict of the Faculties: Perspectives on Artistic Research and Academia. Leiden: Leiden University Press, 2012.
COESSENS, Kathleen; CRISPIN, Darla; DUGLAS, Anne. The Artistic Turn: a manifesto. Ghent, Leuven University Press, 2009.
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. Disponível em: Eduardo Galak – PDF
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Disponível em: Scribd
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
FUENTES, María Josefina Azócar. ANOMÁHLIA:: provocações sobre a pesquisa artística como prática dissidente nos espaços acadêmicos do sul-sul a partir de uma proposta do sul do norte
. Infinitum: Revista Multidisciplinar , v. 7, n. 13, p. 25–51, 13 Dez 2024 Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/infinitum/article/view/22473. Acesso em: 8 out 2025.
4.1 Cartografias afetivas.
A etapa das cartografias afetivas buscou ampliar o olhar sensível dos participantes sobre o Patrimônio Cultural, transformando a experiência em registros emocionais e simbólicos. A dinâmica consistiu em posicionar-se de costas e encostados no monumento, numa tentativa de assumir o ponto de vista do próprio Farol, espreitando o ambiente que o circunda. A partir dessa perspectiva deslocada, cada participante foi convidado a descrever as sensações, imagens e memórias que emergiam no contato com o espaço em uma folha de papel. Esse primeiro movimento simples, mas carregado de intensidade, produziu descrições que atravessam infância, paisagem sensorial e metáforas de memória.
Acerca disso, Merleau-Ponty (1999), nos lembra que o corpo é o mediador da percepção, abrindo a experiência para além do conceitual e inscrevendo o sujeito no espaço vivido.
Nesse sentido, as cartografias afetivas dialogam também com Bourdieu (2009), quando descreve como as disposições incorporadas orientam modos de ver e sentir o mundo. A descrição dos diferentes sentidos em jogo evidencia que o patrimônio não se reduz à materialidade visível, mas envolve um campo perceptivo em que visão, audição, olfato e tato se entrecruzam.
Essa etapa evidencia como o patrimônio se revela como lugar vivo. O olhar afetivo, corporal e sensível permite captar camadas de memória, emoção e simbologia que não seriam percebidas por uma abordagem puramente conceitual. O Farol é vivido, não apenas observado. Cada gesto, som e objeto do espaço torna-se fonte de conhecimento, nos aproximando das reflexões de Geertz (2008) sobre a “descrição densa”, já que os registros não apenas descrevem o espaço físico, mas também revelam camadas de significados culturais e pessoais que emergem no encontro.
3. A CRIAÇÃO DO MAPA MENTAL
A etapa seguinte consistiu-se na elaboração de um mapa mental coletivo, no qual foram registrados os elementos perceptivos, históricos e sensoriais experienciados durante a visita ao patrimônio. Essa prática buscou não apenas organizar informações, mas ressignificar a experiência através de conexões entre memória, espaço e afetividade, bem como traçar percursos sensíveis de ressignificação patrimonial a serem colocados em prática com os discentes do curso de mestrado supracitado e da comunidade local do Monumeto (o Farol). O exercício de construção coletiva do mapa mental nos revelou que a produção de conhecimento está no próprio ato da experiência, que é preciso antes de tudo experienciar para refletir. Nesse sentido, as linhas e palavras inscritas no diagrama não são meras representações, mas sim constituintes de traços de um pensar-fazendo - quase uma parafrase de um "sentir/pensar" de Josefina Azócar (2024) - em que as associações gráficas carregam a experiência viva e orientam percursos sensíveis. O mapa mental, portanto, emerge como ferramenta híbrida, já que transita entre a tentativa de conceituação e a inscrição do indizível, dando forma visual e relacional àquilo que, de outra maneira, permaneceria apenas no plano da experiência tácita.
2. VISITA AO PATRIMÔNIO.
A primeira etapa do percurso consistiu na visita ao Farol da Educação de São Bernardo – MA, situado na Travessa Alexandre Mendes - centro, momento destinado à identificação do patrimônio a ser trabalhado no processo de ressignificação. A presença no espaço permitiu um contato inicial com sua arquitetura singular, marcada pela verticalidade e pela função de guardião da memória. Esse primeiro contato constituiu o ponto de partida para a elaboração dos percursos metodológicos, orientados pela pesquisa artística como forma de dar voz à experiência e de permitir que o patrimônio se revelasse como lugar vivo e ressignificável. Compôs-se então a base para a proposição dos percursos metodológicos, na convicção de que o conhecimento baseado na perspectiva da pesquisa artística, emerge "in and through artistic practice", ou seja, não apenas após a execução, mas durante ela (Borgdorff, 2011, p. 44). Alinhado a López-Cano (2015, p. 83), entende-se que há conhecimentos tácitos, sensíveis e analógicos que “resistem à representação por operadores lógicos” e que processos criativos incluem dimensões cinestésico-motoras ou experienciadas que não se traduzem integralmente em linguagem conceitual. Ver Diário de Campo dos pesquisadores.
4. O UNIVERSO DOS PERCURSOS.
Os percursos metodológicos delineados a seguir constituem um desdobramento da experiência inicial dos pesquisadores no Farol da Educação de São Bernardo – MA. Cada etapa é concebida não apenas como procedimento técnico, mas como instância de produção de conhecimento situado que emerge no e através do fazer. Nessa perspectiva, cada etapa assume caráter processual e aberto, permitindo que o sensível, o tácito e o experiencial encontrem espaço ao lado do conceitual. As práticas propostas, são compreendidas como movimentos de ressignificação, nos quais o patrimônio se revela não como objeto estático, mas como lugar vivo de memória e criação. Assim, o que se segue não deve ser lido apenas como etapas lineares, mas como caminhos interligados, nos quais a experiência se dobra sobre si mesma, retroalimentando o processo dessa ressignificação.
4.2 - Escuta performática.
Como já mencionado, a análise do material desta pesquisa não segue a lógica da objetividade empírica tradicional, mas se dá como aproximação sensível e reflexiva. Este material (vídeo), diferente das análises das cartografias afetivas, não é “dado”, mas matéria de criação. Em vez de buscar interpretar “o que o material significa”, a pesquisa, com metodologia artistica, pode reencenar os gestos. Em vez de descritos, podem ser ouvidos e vistos como performance de memória, ativando o acontecimento em cada clique.
No vídeo, os corpos não estão apenas caminhando em volta do farol, eles cantam. As sílabas Zih, ah, ah, oh se repetem como mantras fragmentados, ressoando no espaço e criando uma atmosfera própria. Cada som vibra não só no ar, mas no corpo de quem canta, que responde com gestos, respirações profundas, pausas. O canto se torna um prolongamento da caminhada, como se cada passo fosse também uma nota, cada giro do corpo um compasso.
O farol, que em seu cotidiano é apenas prédio, se transforma em caixa de ressonância cultural. As vozes se espalham, batem nas paredes, retornam em ecos sutis, fazendo o monumento “falar” junto. O corpo não observa o patrimônio, ele o habita, o convoca, o resignifica. O patrimônio não é mais objeto de contemplação, mas parceiro numa performance coletiva.
Esse vídeo, portanto, não é mero registro. Ele captura a vibração de uma experiência em que som, corpo e espaço se confundem. Quando assistimos de novo, sentimos não apenas o que foi feito, mas somos novamente afetados pelo acontecimento, cada revisão reinscreve a memória, o farol volta a ser espaço de encontro, e não apenas um marco urbano.
Aqui, a pesquisa não busca na análise, limitar-se a dizer “o que aconteceu”, mas deixa-se afetar pela experiência. Pois o vídeo, aqui, é um dispositivo performativo, que reinscreve o patrimônio no corpo de quem viveu e também de quem analisa.
“Toda memória é também criação, e todo lugar pode reinventar-se na experiência de quem o vive.”
(Pereira, Corassa, Santos, Cavalcante e Santos - 2025)
4.3 Equidade do Olhar.
Nesta etapa do percurso, a proposta metodológica buscou exercitar a equidade do olhar, entendida como um convite a perceber o patrimônio por múltiplas perspectivas, sem hierarquias entre modos de ver ou de sentir. Para tanto, os participantes foram conduzidos à experiência do “olhar da formiga”, deitaram-se no chão, posicionando-se ao nível mais baixo possível, e, a partir dessa perspectiva, observaram o monumento.
O exercício provocou uma desestabilização do olhar cotidiano. Ao invés da visão frontal e dominante, típica da apreciação monumental, instaurou-se um olhar lateral, rasteiro, quase subterrâneo. A partir dessa posição, cada participante foi convidado a escrever palavras soltas que exprimissem as sensações e pensamentos emergentes. Essas palavras, reunidas coletivamente, constituíram uma nuvem de significados, revelando a pluralidade de olhares que compõem a ressignificação do Farol. Como observado abaixo:
4.4 Organismo vivo.
O patrimônio, nesta etapa do processo, deixou de ser pensado como algo estático, cristalizado em uma narrativa única, para se revelar como corpo pulsante, que se reinventa continuamente pela presença e pela interação. O Farol não é somente um monumento a ser contemplado, mas um organismo vivo, atravessado pelas histórias, afetos e práticas daqueles que o experienciam. Os participantes foram dispostos em círculo e convidados a compartilhar o que havia sido desnaturalizado em seus olhares durante as etapas de ressignificação do espaço. Cada fala ampliava o sentido do lugar, deslocando-o da esfera do objeto para a do vivo, em que memória, identidade e experiência se entrelaçam. Aprecie o audio abaixo, e desnaturalize o seu ouvido para adentrar o universo de cada resposta.
Considerações Finais
A experiência de ressignificação do patrimônio no Farol da Educação mostrou que a memória e a cultura não se encontram cristalizadas em um passado intocável, mas se movem e se recriam continuamente a partir da relação com os sujeitos que as experienciam. O processo vivido evidenciou que o patrimônio não é apenas algo a ser preservado, mas também algo a ser reinterpretado, sentido e partilhado.
Ao longo das etapas, os participantes e nós pesquisadores não só observamos, mas também atuaramos como protagonistas da construção de sentidos. A prática de olhar de diferentes ângulos, de escutar em círculo e de expressar-se por meio da escrita, da fotografia, do vídeo e do áudio ampliou a percepção coletiva. Nesse movimento, o patrimônio deixou de ser objeto e passou a ser organismo vivo, pulsando e transformando-se diante das interações.
O áudio ocupa, nesta pesquisa, um papel fundamental para esta seção. Ao registrar as vozes dos participantes em círculo, o som funciona como um convite à escuta sensível, cada entonação, silêncio ou hesitação acrescenta camadas de significado que não caberiam apenas na escrita. O áudio, assim como o vídeo, não se limita a documentar, ele abre uma porta de entrada para que o espectador possa também apreciar o momento, sentir sua densidade e integrar-se ao organismo, agora, vivo que é o Farol.