ATLAS DE ANATOMIA

- Atlas of human anatomy


 

Canguru, x-ray drawing

Para a ciência alguns registos encontrados no interior das cavernas podem ser entendidos como um conjunto de diagramas que indicavam ataques padronizados e, cujo objetivo seria elucidar ou até mesmo instruir as gerações de caçadores vindouras. Um dos exemplos mais surpreendentes deste período são as representações criadas pelos aborígenes no norte da Austrália. Denominadas de x-ray drawings, devido às semelhanças partilhadas com a imagem de um raio-x, estas figurações procuravam de um modo muito elementar perscrutar o interior do corpo humano. Embora o propósito destas figuras não se centrasse no estudo da fisiologia animal, não deixa de ser curioso observar a forma como o desenho se vai concretizando no encadeamento das linhas, que por vezes sugerem a formulação da estrutura óssea. (Ford, 1992, p. 17)

 

Ao observar a figura é possível identificar a espinal medula e as articulações presentes nas patas de um canguro, assim como uma tentativa de inscrever e posicionar alguns órgãos na parte interior do dorso. A partir deste desenho poderá questionar-se quais os conhecimentos reunidos sobre a dissecação e a análise de animais mortos, salientando as vantagens que a observação da anatomia teria no domínio das espécies capturadas e consequentemente no aperfeiçoamento de técnicas e utensílios utilizados na caça.

7000 a. C.

 

Apesar da especulação gerada em torno das representações pré-históricas revelar o interesse do homem pela anatomia animal, o despertar da Medicina dá-se no período civilizacional. No Egipto encontram-se algumas representações que remontam ao princípio da prática médica e revelam os procedimentos realizados neste período, dos quais se destaca a cirurgia essencialmente não-invasiva, com exceção da trepanação (perfuração ou raspagem do crânio), aplicada em situações de traumatismo craniano, enxaqueca, epilepsia, distúrbios mentais ou simplesmente para expulsar espíritos malignos. No túmulo de Ankh-ma-Hor encontra-se um relevo que descreve um dos procedimentos cirúrgicos realizados no Egipto – a circuncisão. A sua análise levanta algumas questões, principalmente porque não existem inscrições no interior do túmulo que identifiquem a presença do defunto no papel de médico ou paciente na ação do procedimento. Esta ambiguidade levanta a possibilidade de a representação poder estar associada ao tratamento da parafimose, uma condição inflamatória desencadeada pelo contacto com poeiras e sujidade, no decurso de atividades ocupacionais levadas a cabo por sujeitos que não pertenciam à elite. (Hebron, 2005, p.92) Independentemente das interpretações geradas em torno deste tema, a cena da circuncisão constitui-se como um documento importante que evidencia através do desenho o domínio e a aplicação prática deste procedimento, associado a um contexto religioso ou médico. 

Circuncisão, túmulo de Ankh-ma-Hor Saqqara (Sakkara), Egipto

2,500 – 3,000 a.C. 

 

A figura do médico a examinar o abdómen de uma criança constitui-se como um dos primeiros registos que documentam a ação do terapeuta na observação do paciente.

Davam-se os primeiros passos na descoberta da Anatomia, inicialmente difundida pelos filósofos gregos. A escola hipocrática contribuiu para fundar a Medicina como uma ciência ligada à saúde, passando de uma crença envolta em misticismos para se transformar numa prática regulada. Abandonavam-se os curandeiros para se aplicar um método, hoje habitual, de análise dos pacientes através do qual se observavam os sintomas que estariam na origem das mais diversas enfermidades. Esta análise permitia detetar as doenças mesmo quando não se conheciam as causas e o respetivo modo de tratamento. Perante este cenário os médicos procuravam controlar a situação e ajudavam os seus pacientes a morrer confortavelmente. 


Lápide em mármore, médico ateniense a examinar o abdómen de uma criança

400 a.C.

 

Em contraste com o método de observação e descrição das doenças preconizado pela escola hipocrática, Herófilo (335 a.C.- 280 a.C.) e Erasístrato (304 a.C.- 250 a.C.) encetaram um conjunto de estudos que visavam o conhecimento do corpo humano através da prática da dissecação autorizada.  Surgem neste contexto as primeiras descrições assentes na observação das estruturas anatómicas e consequente análise do seu funcionamento. Herófilo debruçou-se sobre o estudo do sistema nervoso, considerando o cérebro como fonte de inteligência ao invés do coração, enquanto que Erasístrato analisou o sistema cardiovascular distinguindo as veias das artérias. Apesar de terem contribuído para a evolução do estudo da Anatomia e Fisiologia, infelizmente, não ilustraram ou fizeram desenhos com base nas observações das dissecações realizadas. Os documentos escritos perderam-se e grande parte do conhecimento gerado acabou por se refletir na obra de Galeno.

335 a.c. - 250 a. C.

 

Tashrih-i badan-I insan, representação do sistema circulatório e mulher grávida

Mansur ibn Ilyas era um médico persa que se dedicou ao estudo do corpo humano e escreveu vários textos, entre os quais de destaca a obra Tashiri Mansuri (A anatomia de Masur - séc. XIV). Este tratado apresenta-se como um dos primeiros atlas coloridos sobre a anatomia do corpo humano. No seu interior é possível encontrar uma introdução dedicada às diferentes partes do corpo, na qual se mencionam algumas observações de Aristóteles, Hipócrates, Galeno, Rhazes e Avicena. (Khalili; Shoja, 1992, p. 2) Segue-se um corpo de texto dividido em cinco artigos: ossos, nervos, músculos, veias e artérias que culmina num capítulo final dedicado à reflexão sobre órgãos complexos e o desenvolvimento fetal. Para acompanhar a componente teórica, o manuscrito enquadra um conjunto de desenhos que ilustram os diferentes sistemas anatómicos. Nestas ilustrações, o corpo representa-se de frente e é delineado a partir de traços simples e esquemáticos. Não se procurava representar a realidade mas sim situar os elementos na sua relação com o todo, obedecendo assim a uma função didáctica. Apesar de se identificarem inúmeras incongruências em termos compositivos torna-se incontornável questionar a origem destas imagens.


1261

 

A par das imagens que procuravam perscrutar o interior do corpo humano, surgiam na Idade Média um conjunto de representações que procuravam documentar a prática médica. Inicialmente alheia ao conhecimento científico, e baseada em crenças religiosas esta traduzia-se numa aplicação de tratamentos rudimentares e altamente mortíferos. Entre algumas intervenções características da altura, salienta-se a prática da “sangria” que era aplicada na presença de um desequilíbrio entre fluidos corporais. Diante deste quadro, e atendendo à presença de certos sintomas, diagnosticava-se uma sobrecarga de sangue no corpo. Consequentemente era feita a drenagem deste fluído através do corte de uma veia localizada no braço que conduzia, na maioria das vezes, à morte provocada por excessiva perda de sangue. Consequentemente, este e outros procedimentos contribuíam em larga escala para o aumento da mortalidade. Assumiam-se as perdas como um castigo divino e não como uma consequência bruta da falta de conhecimento.


Hans Dirmstein, prática da sangria, ilustração presente no manuscrito Die sieben weisen Meister

1471

 

No decorrer da Idade Média, o estudo da Anatomia foi limitado pelos condicionamentos da igreja que privilegiava a preservação dos cadáveres. A exploração do interior corpóreo permanecia em suspenso até se ultrapassarem os estigmas relacionados com a prática da dissecação humana. Consequentemente apresentavam-se algumas imagens supersticiosas que associavam a astrologia ao entendimento do corpo humano. Diante deste panorama revela-se o Homem-Zodíaco cuja representação remete para uma correspondência entre as diferentes partes do corpo e os signo do zodíaco. Carneiro exercia a sua influência no cérebro, Touro no pescoço, Caranguejo no tórax e assim sucessivamente até encontrarmos o signo de Peixes aos pés da figura humana. 

 



Homem zodíaco medieval, ilustração presente na obra Guild book of the barber surgeons of York

1486

 

A invenção da impressão (c. 1450) permitiu a difusão do conhecimento ciênctífico através da multiplicação de algumas manuscritas. Em 1491, a primeira edição do Fasciculus Medicinae agregava um conjunto de textos e xilogravuras focados na prática médica. As ilustrações baseiam-se na representação externa do copor humano masculino e feminino (revelando neste ultimo a constituição do seu sistema reprodutor), instruções sobre os pontos para a prática da sangria, uma figura dedicada ao homem do zodiaco entre outras. Na versão italiana, publicada em 1494, observam-se os mesmos desenhos (a obra que está patente no Met Museum apresenta alguns apontamentos de cor) dos quais se destaca o retrato de uma dissecação. O dissecador debruça-se sobre o cadáver com uma faca, enquanto o médico conduz a dissecação da cátedra com o auxilio do livro.

Johannes de Ketham (autoria incerta),ilustração presenta na obra Fasciculo di medicina

1494

 

Leonardo da Vinci (1452-1519) realizou vários estudos anatómicos consubstanciados pela prática da dissecação e o domínio da representação artística. Apesar dos seus desenhos serem exímios na exploração da morfologia do corpo humano, o conhecimento que neles se encerra foi ingnorado pelos seus contemporâneos e por isso não teve qualquer impacto na evolução desta disciplina. Do seu reportório gráfico destacam-se as representações que analisam as alterações vasculares provocadas pelo envelhecimento e que resultaram do contacto que teve com um paciente centenário, internado no Ospedale de Santa Maria Nuova, que apesar de não apresentar um quadro de doença acabou por falecer. Ao realizar a autópsia pôde observar as lesões vasculares, características da aterosclerose, e considerou que estas estariam associadas à causa da morte. Perante esta conclusão fez um desenho onde estabeleceu uma comparação entre as lesões encontradas na autópsia (à esquerda na figura) e o sistema vascular de uma criança de dois anos (representação do braço), destacando a relação entre a redução do calibre e o aumento da espessura da parede vascular face à progressão etária. (Silva, 2008) Esta comparação, consolidada através do desenho, permite ilustrar e comunicar o conhecimento adquirido na altura, abrindo em simultâneo o debate sobre as consequências do envelhecimento nos processos de transformação interna do corpo humano.

Leonardo da Vinci, representação das veias superficiais do membro superior esquerdo

1508

 

Na passagem da Idade Média para o Renascimento, o desenho marca finalmente a sua posição ao lado da Medicina quando se propõe a ultrapassar a tradição manuscrita, suportada pela cópia de desenhos antigos, e se baseia na observação directa da natureza. A necessidade de adequar a linguagem visual do desenho à sua utilidade, conduz ao desenvolvimento de uma representação com determinadas qualidades gráficas. O desenho realizado por Hans Wächtlin foi realizado como consequência directa da dissecação de um homem enfor- cado. (Baigrie, 1996. p. 47) Dissecado pelo Dr. von Brackenau, o corpo é representado numa linguagem semelhante à de Dürer, focada nas particularidades e imperfeições de cada ser vivo. Neste desenho Wächtlin priveligia a singularidade da figura humana na preservação da sua identidade, marcada pelo rosto torturado e braço torcido. Desprovido de artifícios, este desenho relata de forma crua a exposição das vísceras perante o olhar perscrutador do observador. Ao redor da figura é possível examinar de forma sequenciada o encaixe do cérebro na cavidade craniana. Existe uma preocupação em decompor as estruturas que comportam o cérebro, assim como a necessidade de identificar os órgãos localizados no tórax e no abdómen.

 Hans Wächtlin, gravura

1517

 

No Renascimento a representação da figura humana começou a ser cada vez mais realista. A invenção da perspectiva e a aplicação do claro-escuro para simular noções de profundidade e tridimensionalidade, contribuiram para aproximar os artistas dos anatomistas com objetivo de comunicar os avanços científicos realizados na época. A possibilidade de representar de modo realista o conhecimento anatómico inaugurou um período profícuo em termos de investigação sobre a compleição física do ser humano, identificação das suas estruturas internas e respetivo funcionamento. Imbuído pelo espírito progressita, Jacopo Berengario da Carpi (1460-1530), anatomista, foi um dos autores mais proeminentes deste período. Compilou as primeiras ilustrações realizadas a partir da observação do natural na sua obra Commentaria super anatomica mundini. (Costa, 2014. p. 35)




Hugo da Carpi, ilustração presente na obra Commentaria super anatomica mundini

1521

 

Mondino Luzzi (1270-1326) publicou em 1316 o tratado Anathomia, no qual aliou os estudos de Galeno à prática da dissecação realizada pelo autor. Mondino defendeu a importância da dissecação para o ensino da medicina como a base empírica que auxiliava o entendimento da anatomia. A edição original da sua obra não incorporava qualquer tipo de referência visual, sendo estas introduzidas posteriormente por alguns dos seus seguidores, entre os quais se destaca o anatomista Johannes Dryander. Os desenhos representam o corpo humano como um livro a partir do qual se pode folhear e observar o posicionamento e a morfologia das suas estruturas internas.

 



Johannes Dryander, sistema reprodutor feminino, ilustração presente na obra Anathomia de Mondino Luzzi

15411

 

Andreas Vesálius (1514 - 1564) defendia a prática da dissecação na conquista do saber inerente aos sistemas que sustentam o corpo humano e encorajava os estudiosos a complementarem o intelecto com a manipulação do cadáver. Seria através do manuseamento da sua estrutura interna que se poderia fazer ciência. A par da exploração do interior corpóreo, reforça a importância da sua representação como um método de preservação das estruturas anatómicas e a conceção de um guião para a aprendizagem da anatomia. Este pensamento deu origem à obra De Humani Corporis Fabrica (1543), composta por um conjunto de gravuras que percorrem a Anatomia, desde a prática da dissecação, passando pelos seus instrumentos, até à representação dos diferentes sistemas funcionais do corpo humano. Estes desenhos mostram num exercicio de puro dramatismo um corpo que se vai decompondo por camadas. A figura vai despindo lentamente a sua muscurlatura revelando as estruturas subjacentes à pele. Muito embora a representação comportasse uma dimensão dramatica, assentuada na pose das figuras e enquadramentos de origem paisagistica ou arquitectonica, estes desenhos contribuiram para a evolução do estudo da anatomia e respectiva representação do corpo.  No diálogo entre a decadência do corpo e a perenidade da imagem, Vesálio combinava desenhos com palavras. Atribuía pequenas letras aos diferentes componentes do corpo humano, para depois se referir a eles no texto. Nesta lógica de identificação era possível intercalar a imagem com o texto, proporcionando um entendimento mais aprofundado sobre os assuntos explorados no desenho.

Jan Steven van Calcar, xilogravura apresentada na obra De humanis corporis Fabrica 

1543

 

Charles Estienne (1504-1564) formou-se em medicina em Paris e deu aulas de anatomia na Faculté de Médicine. Foi contemporâneo de Andreas Vesalius e por isso a sua obra De dissectione partium corporis humani é frequentemente comparada a este autor. Estienne descobriu o canal centrar na medula espinhar e reconheceu que o esófago e a traqueia são orgãos separados. Os desenhos anatómicos presentes nesta publicação foram preparados a partir da observação directa das estruturas e elaborados com a contribuição do cirurgião Etienne de la Riviére.

Etienne de la Riviére, xilogravura apresentada na obra De dissectione partium corporis humani

1545

 

André Du Laurens (1558-1609), publicou em 1600, a obra Historia anatomica humanis corporis na qual se inserem um conjunto de gravuras detalhadas, das quais se destacam aquelas que ilustram o sistema reprodutor feminino e masculino. A volumetria das estruturas é trabalhada de forma exímia através da criação de tramas que vão cobrindo as superficies e criando uma distinção clara entre o que define o exterior e o interior do corpo humano.

Andreae Lavrentii, Ferrerii Domini, Gall. Regis Christian, gravura apresentada na obra Historia anatomica humanis

1627

 

William Harvey (1578 - 1657), que se propôs a rever alguns aspectos do galenismo que permaneceram inalterados. Atentando à fisiologia galénica, esta compreendia a existência de dois sistemas circulatórios: um vincu- lado ao fígado que produzia sangue – fornecendo alimento através das veias, e outro, no qual o coração provocava uma combustão entre o ar que vinha dos pulmões e o sangue – que depois circulava nas artérias. Perante esta duplicidade, Harvey baseia-se na teoria aristotélica e prevê um sistema único através do qual o coração funciona como uma bomba que faz circular o sangue por todo o corpo. Para demonstrar a sua teoria o médico recorreu a uma experiência simples documentada através do desenho. Analisando a figura de cima para baixo, encontra-se a ilustração de um braço com um garrote, cuja mão permanece agarrada a um objecto tubular. A repetição deste elemento, numerado de um a quatro, enfatiza o número de figuras necessárias à explicação da circulação do sangue nas veias. Em auxílio deste exercício, as mãos vão pressionando os vasos sanguíneos com o objectivo de precisar a deslocação do fluído da esquerda para a direita.

William Harvey, gravura apresentada na obra Historia anatomica humanis

1628

 

O estudo da anatomia é amplamente explorado no século XVIII através de um conjunto de obras ilustradas com representações excepcionais, entre as quais se destaca a Tabulae sceleti et musculorum corporis humanio do professor de anatomia e cirurgia Bernhard Siegfried Weiss, também reconhecido por Albinus (1697- 1770). Nesta publicação os desenhos gravados em placas de cobre representam com grande detalhe a miologia e a osteologia do corpo humano, destacando o grau de verossimilhança entre a natureza das estruturas anatómicas e a sua respetiva representação. Este exemplar, amplamente copiado e difundido, contribuiu para aproximar e legitimar a importância do desenho no contexto da representação científica da anatomia.

Bernhard Siegfried Weiss, gravura em cobre apresentada na obra Tabulae sceleti et musculorum corporis humani

 

1749

 

O século XVIII inaugura o intercâmbio fortuito entre o desenho e a ciência, promovido pela aparição da ilustração médica. Como resultado desta união o desenho alterava os seus contornos no alcance de uma linguagem cada vez mais precisa e aproximada à realidade que se procurava representar. Para acompanhar o rigor científico não se contemplavam desvios na representação e imposições de cunho artístico. Neste compromisso, o desenho acompanha a fundação de várias disciplinas médicas, entre as quais se destacam a obstetrícia. Na vanguarda desta especialidade, William Hunter (1718 - 1783), anatomista e obstetra produz um trabalho de extrema relevância para o avanço da obstetrícia. A Anatomia uteri umani gravidi, apresenta- se como uma obra notável no estudo da gestação, cujas ilustrações realizadas por Jan van Rymsdyk (1730 - 1790) revelam de forma crua o realismo incisivo da dissecação. Por entre as trinta e quatro gravuras presentes na obra é possível acompanhar as diferentes fases da dissecação do útero gravídico. Rymsdyk vai revelando o seu conteúdo e a configuração dos seus componentes até terminar na presença efectiva do gestante. O realismo evidenciado nestas imagens marca o momento em que melhor se soube conjugar as valências partilhadas entre arte e ciência.

Jan van Rymsdyk, Anatomia uteri humani gravidi tabulis illustrata

1774

 

Bartholomeus Eustachius (1520-1574) também contribuiu para o amadurecimento da Anatomia debruçando-se na descrição dos canais auditivos, do cérebro e respetivos nervos cranianos, entre outras descobertas sobre a anatomia abdominal. Escreveu a obra Opuscula Anatomica onde expôs os seus estudos acompanhados de 8 gravuras que ilustravam algumas ideias sobre o funcionamento dos rins e do sistema circulatório. Após a morte do autor, Giovanni Maria Lancisi (1654–1720) descobriu trinta e oito placas de cobre gravadas por Giulio de' Musi (1535–1553), cujos desenhos estavam destinados a ilustrar outra obra de Eustachius. Como o texto nunca foi encontrado, Lancisi publicou as gravuras sob o título Tabulae anatomicae Bartholomaei Eustachii. Uma característica curiosa nestes desenhos é o uso de réguas numeradas e impressas nas bordas para localizar as estruturas anatómicas sem recorrer ao uso de letras ou números nas imagens.

Bartholomeus Eustachius, gravura apresentada na obra Tabulae Anatomicae

1783

 

Jean-Galbert SalvageAnatomie du Gladiateur combattant

Jean-Galbert Salvage (1770 – 1813) foi um médico e professor no Hopital Militaire em Paris que desenvolveu competências artísticas ao longo da seu percurso profissional. Tinha uma grande admiração pela escultura clássica e acreditava que a perícia técnica aplicada à estatuária não se baseava exclusivamente na observação superficial do corpo humano, sendo complementada com um conhecimento profundo sobre a sua estrutura interna. Para explorar a sua teoria, decidiu retratar as estruturas anatómicas subjacente à figura de Apollo e do gladiador Borghese com o intuito de revelar as coincidências presentes entre a miologia e osteologia e a representação superficial destas estruturas. Os desenhos apresentados na obra Anatomie du gladiateur combattant, applicable aux beaux arts ou Traite des os, des muscles, du mécanism des mouvemens, des proportions et des caracteres du corps humain apresentam essas figurações retratando com grande detalhe as camadas musculares de um corpo em movimento, observado a partir de diferentes perspetivas. (Lifchez, 2009)

1812

 

No século XIX o estudo da anatomia humana atinge o seu apogeu quando Jean Baptiste Marc Bourgery (1797-1849) e Nicolas Henri Jacob (1782-1871), publicam uma obra extraordinária de grande formato, intitulada de Traité complet de l’anatomie de l’homme na qual se pode observar a representação do corpo humano de forma detalhada. A presença da cor permite diferenciar as estruturas representadas a partir da observação do natural com o objetivo de retratar a dissecação do corpo humano com um grau de verossimelhança notável. 

Nicolas Henri Jacob, litografia, Traité complet de l'anatomie de l'homme, comprenant la médicine opératoire

1831

 

A evolução da cirurgia e a análise dos procedimentos cirurgicos, contribuía para a evolução da anatomia e entendimento do funcionamento das suas estruturas fisiológicas. As representações gráficas que documentam as descobertas levadas cabo no campo da cirurgia, constituem-se como uma narrativa visual na qual se descreve pormenorizadamente as técnicas cirurgicas com o objectivo de comunicar de um modo eficaz o conhecimento que se encerra nas imagens. A numeração das figuras acomodadas de forma sequêncial no plano da imagem, constituem-se como uma espécie de instrução do procedimento em questão. 

Jean Baptiste Léveillé, gravura, Précis iconographique de médecine opératoire et d’anatomie chirurgicale, vol. 1

1848

 

Entre os séculos XVI e XIX, a anatomia já tinha identificado e descrito grande parte da estrutura corporal humana e por isso abria a possibilidade de se explorarem outras subdivisões, entre as quais se destaca a anatomia patológica que se debruçava no estudo do cadáver sob o ponto de vista clínico. A necessidade de compreender as alterações provocadas pela doença, aliada à descoberta do microscópio, permitia aprofundar o conhecimento da biologia aplicado à medicina. Neste contexto, Rudolf Carl Virchow (1821-1902) enceta um conjunto de descobertas no campo da patologia celular na tentativa de descortinar qual a origem das alterações provocadas por algumas de algumas doenças caractisticas da altura como o raquitismo. Uma das obras que publicou Die Cellularpathologie defendia a tese de que as doenças são baseadas em distúrbios encontrados nas células do corpo. Para ilustrar sua a teoria, apresentam-se um conjunto de desenhos onde se identificam as alterações celulares que caracterizam a presença da doença. 

Rudolf VirchowDie Cellularpathologie

1858

 

Henry Gray (1827-1861) promove a ligação entre a prática do desenho e a aprendizagem da anatomia até à actualidade. A sua obra Anatomy: descriptive and surgical (a primeira edução data de 1858) ilustrada por Henry Vandyke Cartes (1831-1897) contém cerca de trezentas gravuras que ilustram as estruturas do corpo humano com rigor e precisão. O seu caráter didáctico transformou-a num ponto de referência para os estudantes de medicina que continuam a consultá-la como documento de auxilio à compreensão das formas anatómicas. A sua constante reedição sublinha e perpetua a importância do desenho na construção do conhecimento e do discurso científico.

Henry Vandyke CartesAnatomy: descriptive and surgical

1860

 

G. DevyTraité d'anatomie humaine

A obra de Léo Testut (1849-1915) Traité d' anatomie humaine, dividida em várias partes: 1. Ostéologie. Arthrologie. Myologiet; 2. Angéilogie. Système nerveux centralt; 3. Système nerveux périphérique. Organes des senst; 4. Appareil de la digestion. Appareil de la respiration et de la phonation. Appareil uro-génital. Embryologie, terá servido de referência a várias gerações de médicos. A estrutura a partir da qual se organizam os conteúdos assemelha-se aquela que se encontra nos manuais de anatomia que são utilizados actualmente. É curioso observar que os desenhos apresentados nesta obra mantém uma relação de proximidade em termos de linguagem gráfica com as ilustrações de Henry Vandike Carter. Em ambos os exemplos, a representação da tridimensionalidade realizada por intermédio de tramas modeladoras do volume, evidenciam a eficácia desta técnica na representação do corpo humano.

1899

 

Max Brödel (1870 – 1941) evidencia-se como uma figura proeminente no desenvolvimento da ilustração médica, principalmente no campo da cirurgia. Procurou conjugar a sua habilidade artística com a aquisição de conhecimentos na área da Medicina através do contacto com alguns médicos no hospital Johns Hopkins, local onde trabalhou enquanto ilustrador e no qual acabou por fundar a primeira escola de ilustração médica. Os seus desenhos documentam alguns procedimentos na área da neurocirurgia (figura 3) e são extraordinários porque introduzem a perspetiva aérea como uma estratégia de visualização das estruturas anatómicas do ponto de vista do cirurgião. Desenhados com grande rigor, estas imagens incorporam magistralmente o realismo dos tecidos com a anatomia transversal, aliando o conhecimento transposto na imagem e a precisão topográfica. (Patel et al., 2011)

Max Brödel, Walters Collection

1915

 

A divulgação dos desenhos realizados por Brödel revelou a importância da representação no contexto da formação médica, considerando a sua utilidade no entendimento e consolidação de conhecimentos. Este reconhecimento fomentou a emergência de outros ilustradores como Frank Netter (1906-1991), cujas ilustrações continuam a persistir nas edições atuais dos atlas de anatomia utilizados pelos estudantes de medicina. O estilo dos seus desenhos é inconfundível na medida em que reune o realismo e a precisão científica na construção da imagem. A utilização da cor realça as estruturas anatómicas representadas no desenho, facilitando deste modo a leitura e interpretação da imagem. Talvez por este motivo é que actualmente os estudantes de medicina analisam atentamente os seus desenhos quando estudam para os exames de anatomia. Alguns deles chegam mesmo a copiar estas representações como forma de memorizar o posicionamento de determinadas estruturas. 

Frank Netter, morfologia da cabeça, ilustração presente no livro Atlas de Anatomia Humana Netter

 

1989

 

Software de visualização 3D do corpo humano, https://human.biodigital.com

 

Atualmente, a representação gráfica do corpo humano continuam a ser um material de apoio importante para o estudo da anatomia. Os softwares de visualização 3D (figura 4) podem substituir ou complementar as versões em papel dos Atlas, possibilitando o início de uma viagem interativa pelo interior do corpo humano. Através da manipulação do cursor é possível girar o desenho de forma livre e observar de diversos ângulos os sistemas funcionais, destacando os seus respetivos componentes e a informação teórica. A navegação no software é bastante intuitiva e permite executar um conjunto de ações como retirar camadas, identificar estruturas e eliminar componentes, promovendo uma experiência de dissecação virtual do corpo.

 

2017

 

REFERÊNCIAS

 

Ford, Brian J.– Images of Science: a history os scientific illustration. Londres: The British Library, 1992


Hebron, Caroline Susan – Aspects of health, injury and disease amongst the non-elite workforces of Dynastic Egypt [Em linha] [United States: ProQuest LLC] 2013. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW:https://discovery.ucl.ac.uk/id/eprint/1445548/1/U592872.pdf

 

Khalili, M.; Shoja, M. – Illustration of the heart and blood vessels in medieval times [Em linha] [s.l.: s.n.] 1997. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20060606, p. 1


Silva, João Martins – Leonardo Da Vinci e as Primeiras Observações Hemodinâmicas. [Em linha] [Lisboa: Sociedade Portuguesa de Cardiologia] 2008. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/989

 

Baigrie, Brain S. – Picturing Knowledge: Historical and Philosophical Problems Concerning the use of Art in Science. Toronto: University of Toronto Press, 1996

 

CostaHenrique Antunes. – Projeto original de modelo tridimensional para anatomia artística: constituição osteológica e miológica do corpo humano. Lisboa: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2014. Tese de Doutoramento


Lifchez, Raymond – Jean-Galbert Salvage and His Anatomie du gladiateur combattant: Art and Patronage in Post-Revolutionary France. Metropolitan Museum Journal44, 163–184. 2009. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: http://www.jstor.org/stable/25699111

 

Patel, S. K., Couldwell, W. T., & Liu, J. K. – Max Brödel: his art, legacy, and contributions to neurosurgery through medical illustration. J Neurosurg, 115(1), 182-190. 2011. [Consult. 9 Mai. 2023]. Disponível em WWW: https://doi.org/10.3171/2011.1.Jns101094