Processo retórico
Transmutatio; transformação; troca
Troca de lápis pela cenoura e cenoura pelo lápis.
Normas:
a. afiar um lápis ----> mundo do desenho
b. cortar uma cenoura ----> mundo da comidaa relação entre o desvio e a norma?
Desvios
- afiar a cenoura
- utilizá-la para desenhar
- estar no chão a fazê-lo
- não comer a cenoura
Relação entre o desvio e a normaInicialmente pensei apenas que se tratasse de um tropo, pois são dois elementos que vêm de sítios diferentes e coexistem juntos, embora separados. No entanto, há momentos que ocorre uma interpenetração desses dois mundos.
1. Afiar a cenoura
2. Aparar a cenoura com uma faca
(alternar entre os dois)
3. Utilizar as lascas para desenhar um lápis
4. Utilizar os aparas para desenhar uma nuvem
O ensaio visual que realizei continha três gestos: afiar, desbastar e compor. Primeiro alternei entre desbastar uma cenoura e afiar a sua ponta. Quando a cenoura acabou, desenhei com as tiras desbastadas um lápis e com os “aparas” uma nuvem.
Inicialmente, pensei que os aparas da cenoura poderiam desenhar um lápis. A ideia de realizar um gesto circular interessou-me, utilizando a cenoura enquanto lápis para desenhar um lápis (lápis → cenoura → lápis). Na realidade, esta ideia não surgiu a partir do pensamento da auto-representação a nível pessoal, mas sim do pensamento acerca de como realizamos certos gestos do quotidiano sem pensar neles. Decidi então pegar em dois deles e fundi-los. No entanto, a questão auto-representativa permanecia e daí surgiu a nuvem. O gesto partiu da vontade de o experimentar e a nuvem de uma necessidade de resposta ao cariz auto-representativo em si.
Este ensaio contem dois graus-zero: afiar um lápis (não existe fisicamente, mas está implícito)e compor os aparas(mundo do desenho) e cortar uma cenoura (mundo da comida). Os seus desvios são os atos de afiar a cenoura, utilizá-la para desenhar, não a comer e estar no chão a fazê-lo.
São estabelecidas várias ações retóricas: a substituição do lápis pela cenoura (inmutatio e transmutatio), os gestos de afiar e aparar em repetição até a cenoura acabar (adiectio) e o acumular dos aparas e lascas, para os compor num desenho no final (adiectio).
O nível percebido deste ensaio visual é uma pessoa sentada no chão a alternar entre desbastar e afiar uma cenoura e de seguida a desenhar com ela. O seu nível concebido é uma fusão de dois gestos quotidianos, estabelecendo uma relação entre eles e destacando-os através da repetição. O afiar representa de forma implícita um lápis e, por sua vez, o desenho. A cenoura remete para a comida, o ato de comer ou até para um gesto de preparação de sopa. A imagem composta pelos pedaços é uma espécie de meta-imagem, sem recorrer a um lápis, utilizar uma cenoura como tal enquanto é afiada, para depois utilizar os seus restos para desenhar um lápis.
Refletindo acerca da relação de comparação entre uma nuvem e uma pessoa, seguem várias características e elementos de nuvens com os quais relaciono comigo mesma. Primeiro, a sua fluidez e a maneira como se transforma, que é um assunto em que tenho pensado dentro da minha prática artística, a ideia de “shapeshift” e de como as minhas obras mudam de forma e procuram representar movimentos, sensações e estados. Além disso, o ato de pairar no ar e o aéreo em si, diz-se por vezes “estás de cabeça no ar!” ou “...de cabeça nas nuvens!”. Por fim, a água que contem e a chuva, relacionando-a com a quantidade de água que o nosso corpo tem, e também o ato de chorarmos enquanto chuva cair. Neste sentido, penso que toda a gente pode, às vezes, sentir-se uma nuvem. Pessoalmente, penso que por vezes sou muito enevoada, andando pelo mundo entre flutuar e pôr os pés no chão.
Inicialmente pensei apenas que se tratasse de um tropo, pois são dois elementos que vêm de sítios diferentes e coexistem juntos, embora separados. No entanto, há momentos que ocorre uma interpenetração desses dois mundos. A alternância entre os dois mundos traz uma espécie de sensação de expectativa do que surgirá a seguir, fazendo-nos questionar de qual dos mundos fará parte ou se haverá distinção. A seguir a cortar uma cenoura, o esperado seria cozinhá-la ou comê-la, neste caso eu juntei os seus bocadinhos para compor uma imagem. Esse desvio pode causar estranheza e abrir as possibilidades do desenho.
Gostei de passar tempo a afiar a cenoura e entrar nos seus gestos de repetição alternados: entre afiar e desbastar com a faca, embora ache que o elemento nuvem pudesse ter estado mais proeminente de alguma forma. Senti uma certa dificuldade em pensar em algo auto-representativo e por isso, a maneira como surgiu o gesto, fez com que o resultado não fosse um ato inteiramente auto-representativo. Apesar de achar que o gesto e o pensamento por detrás da sua realização representam bastante bem a minha prática e a maneira como estabeleço jogos de duplos significados entre as coisas, ele surgiu sobretudo de uma vontade de o experimentar, mas não realizou um desvio na forma como eu mesma me apresento, apenas na maneira como as pessoas se apresentam, no geral.
Não é costume afiar uma cenoura nem desenhar com ela, mas não é algo que se relacione intimamente com a minha pessoa nem a forma de me apresentar. A relação da nuvem com uma pessoa não estava explícita também, talvez tenha sido demasiado codificada.
Concluo que a retórica ocupa um lugar importante na maneira como nos comportamos socialmente e na maneira como criamos. O mesmo se aplica à sua relação com o pensamento contemporâneo sobre desenho e performatividade, onde ocupa um espaço constante e tem um papel fundamental na nomeação e consciencialização de mecanismos que são realizados naturalmente. Isto permite não só que estes se realizem de forma mais propositada, mas também uma maior análise da linguagem artística e social dentro da sua significação e contexto.






